Às vezes vou visitar as coisas de que me lembro. Ainda não sou muito grande mas já sou capaz de me lembrar de muitas coisas. Umas coisas que aconteceram e outras que nunca aconteceram.
Lembro-me, por exemplo, de me pôr a engolir ar, engolir ar e, depois, começar a sentir-me leve e leve até levantar os pés do chão e ficar a flutuar pela sala da minha casa.
Lembro-me muito bem de andar assim suspenso junto ao tecto. Parecia um heli-pássaro. Uma mistura de passarinho e helicóptero. Ficava quase sem peso e andava a flutuar, a ver as coisas de cima, a ouvir as coisas lá em baixo.
Tudo parecia tranquilo e calmo. As pessoas entravam e saíam da sala e falavam com suavidade sem sequer repararem que eu andava por ali quase a bater no tecto.
A minha mãe era leve. Trazia os talheres, os guardanapos, os copos. O meu pai chegava. Sorria. Os dois sabiam ainda sorrir um ao outro e eu seguia daqui para ali como se uma brisa me empurrasse e de repente quase que dava uma cabeçada no candeeiro.
Lá em baixo havia uma grande arrumação e limpeza. A madeira dos móveis brilhava. A mesa estava posta para jantar e a luz da tarde adormecia por fora da janela e tudo ia ficando envolto numa penumbra morna e doce.
Lembro-me tão bem de como era bom andar a flutuar pela casa fora quando tudo em casa era uma grande paz... Que pena nunca ter acontecido...
in "DIÁRIO INVENTADO DE UM MENINO JÁ CRESCIDO"
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