sexta-feira, 2 de maio de 2008

PALAVRAS COMO PEDRAS

MAIO DE 68

(Sobre uma pintura de Júlio Pomar)


Todos os cavalos são jovens
quando o poder cai na rua.
É tudo o que posso dizer agora
olhando cuidadosamente
aquilo que a memória me diz ter sido
o terramoto da minha juventude.

Pergunto: primeira linha,
onde estão os companheiros
que há 30 anos lançavam
palavras duras como pedras de basalto?
E os que dançavam nus
na fonte da sua tão pura
e perversa idade?
E os que quebravam cadeias e tabus?
E os que habitavam o novelo inconsolável
da perfeita inquietação?

Pergunto por eles:
Joaquim, Zé Carlos, Isabel, Amélia, António, Violeta,
onde estão vocês agora
ó fios de prumo da raiva
ó pequenos deuses da minha juventude a galope?

Um casou-se bem e é presidente
de uma coisa difícil de soletrar.
Outro escreve no jornal
importantes banalidades de veludo.
Outro é director de uma fábrica
de tornar crianças parvas.
Outro é ministro de Assuntos Muito Oblíquos.
Alguns deixaram-se queimar
no seu próprio fogo
e ficaram tristes para sempre.
Uma outra que
encontro de vez em quando
é médica e diz que ainda se comove ao tropeçar
nas guelras do sofrimento alheio; luta
quase sempre sozinha
para trazer o arco-íris
para a sala escavacada
das urgências de um hospital de província.

Um outro
finalmente
diz quem sabe que é poeta
e guarda num canto da gaveta do seu quarto
uma palavra impossível
uma fome inconsolável
um sorriso
uma pedra
uma côdea de pão solene e grave
uma música nos olhos
que ninguém pode calar.

José Fanha ("Marinheiro de outras luas", a publicar)

6 comentários:

  1. ("Marinheiro de outras luas", a publicar)

    ...e quanto mais depressa, melhor!

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  2. Belíssimo poema!
    Fico à espera do livro...

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  3. Será decerto salvadora a pedra-palavra que o poeta tem guardada.

    Um abraço.

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  4. Amigo José Fanha,

    que o "Marinheiro" use também as palavras com a força do sentir!!!

    Bjkas!!

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  5. Boa noite

    Que lindo!
    como sempre...

    um sorriso largo :)

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