terça-feira, 8 de julho de 2008

INFINITO O SILÊNCIO

MANUEL CINTRA (1956)


2.

Fez-se outono em janeiro, Pázinho,
e uma a uma, as gotas dela caem como folhas.
Agora o tempo e o tormento estão de braço dado
e eu que nunca paro dei comigo mais parado

do que ela que ao parar só luta
contra a corrente que toda a vida a inundou
de vida e contra-vida e de lutar
e de não querer que a morte fosse morte
nem houvesse despedida dos que partem
e se calhar ficam, perto de nós
a descansar.

Veio uma rajada mais fria, Pázinho,
e pôs-lhe os cabelos loiros
no sítio mais precioso da lembrança.
Agora caminhar vai ser difícil.
Tu vais sentir-te mais pesada,
e passo a passo e devagar e quase sem querer
vais reviver toda uma vida iluminada
por essa luz estranha essa alquimia particular
que se afasta agora, segundo a segundo
como quem previne que vem aí a escuridão.

E sei que te vai doer
como já a mim me dói tudo isto
esta luta absurda contra a própria luta
este correr parado contra o tempo
esta angústia de a ver assim deitada
e nada poder senão sorrir, com tristeza,
e mesmo assim para dentro,
que cá fora tudo flui num mar de lágrimas
e numa certeza grande enraizada.

Vai fazer-se outono outra vez,
um dia, Pázinho, e não haverá folhas
tal como agora.
Não se ouvirá cair um galho, nem cantar
gente ou pássaros ou céu ou chuva,
nada disto que nos confunde e atrapalha
quando no fundo o que queríamos
era apenas sofrer em paz.
Nem um dedo se moverá. Nem tu,
nem eu, nem a implacável corrente
dos minutos.

Aí,
que mais poderei fazer além de dar-te a mão
e partilhar contigo a cor da morte
a caminho do dia, a caminho do canto
pois nada do que parte se recusa a cá ficar
e toda ela é nossa, e nós dela somos,
e isso, Pázinho, ninguém o pode evitar.


Manuel Cintra

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