quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O MAR INVADE TUDO


Ao longo da vida tenho acompanhado colecções de poesia mais ou menos breves, mais ou menos duradouras, que têm publicado livros inesquecíveis e têm divulgado poetas de outras línguas que de outra forma não teríamos conhecido.

Lembro-me dos Cadernos de Poesia da D. Quixote, da colecção de poesia da Campo das Letras, da Presença, da Limiar, da Nova Realidade e, entre muitas outras, desta colecção da Quetzal doutros tempos.

"Lisboas" será seguramente um dos livros que eu guardaria entre os mais importantes que se publicaram nas últimas décadas.

O seu autor é um poeta que acompanho a par e passo há muitos anos. Gosto da sua escrita, complexa, por vezes dura, mas trazida cá para fora no fio da urgência de tornar palavra cada degrau da vida



A INUNDAÇÃO

O mar invade Lisboa mas por dentro
enquanto o vento enfeita
as filhas dos polícias
e há um vago frio nos olhos
mais dementes
destas tardes.

As crianças vestem
coloridamente
seu mórbido e inesperado
séquito.

Mas nas ruas da Raiva
nota-se uma abundância
palpável

um rio vagamente doloroso

um mar por dentro.

Nas lojas de fazendas
na menina da caixa
no fastio amarfanhado
dos porteiros.

Gotas marítimas notavam-se
no brilho das pulseiras
de uma amante
líquido miúdo mas brilhante
até nas varizes das peixeiras.

Há quem diga do sol
um sol insólito é bem certo
mas nota-se até na cauda dos insectos
piedosas solícitas gotas de humi ( l ) dade.

O mar invade tudo mas por dentro.

Armando Silva Carvalho


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