Nem tudo na educação tem de ser subjugado à ideia de prazer.
O prazer de que se fala é, geralmente, solipsista e, pior, absolutamente superficial. Se o livro é muito grande e se esse facto prenuncia uma falta de prazer, dá-se a ler apenas um resumo. Se o resumo também está longe da ideia de prazer dá-se um resumo do resumo. Se mesmo assim, o jovem não encontra prazer naquelas 10 linhas escorridas, dá-se-lhe um CD interactivo e, como é necessário cumprir o programa, acaba-se a enviar os meninos para a investigação na net, ou seja, copy and paste, copiar , colar e imprimir.
Através de sucessivas reformas tão cheias de pântanos pedagógicos como de inutilíssimas acções de formação e regulamentos cada vez mais policiais, muitos dos nossos professores têm vindo a ser transformados em funcionários públicos, bem intencionados em muitos casos, mas ronceiros e cada vez mais incapazes de acender a paixão do saber nos seus alunos.
Muitos de nós aprendemos tarde, para lá da infância ou até da juventude, a gostar de algum daqueles pratos de sabor mais complexo da nossa culinária. No meu caso foram as favas. Não as aceitei bem quando as abordei das primeiras vezes. Não é fácil gostar de umas favas guisadas com toda aquela arquitectura de sabores que as torna num prato de excepcional qualidade.
Levou tempo até que, pela mão do meu pai, aprendi a gostar de favas e apercebi-me de que tinha acedido a um espaço de prazer requintado.
Hoje estou certo de que os grandes prazeres exigem grandes trabalhos, trabalhos penosos que terminam em palácios de excepcional beleza e superior prazer.
Ler a “Guerra e paz” de Tolstoi, os poemas de Rilke, de Celan, ou os Haikai de Bashô, a Divina Comédia de Dante ou os “Lusíadas” são aventuras que exigem uma disponibilidade e, talvez, um esforço significativo. Mas no final, e até muito antes do final, que luxuoso prazer!
Não tenho dúvida em afirmar que a sabedoria implica paixão e o apelo a um prazer que não se resume ao efémero do momento mas vai muito para além dele.
Encontrar um poeta que não conhecíamos e que nos abre uma porta para novas formas de nos relacionarmos com o mundo é um prazer de raríssima intensidade.
Aconteceu-me ficar em estado de completa euforia quando entrei pela obra do mexicano Octávio Paz, dos polacos Milosz e Szymborska, do francês René Char, entre outros. Mas não foi fácil porque são escritores de outros universos culturais, com experiências históricas diferentes, com ritmos e respirações poéticas que é necessário aprender a ouvir.
Depois, quando já caminhava pelas sendas por vezes intrincadas de alguns destes poetas, mal passei ao estado de paixão, tive de falar deles aos meus amigos, quase que obrigar as pessoas à minha volta a lê-los e a ouvi-los.
Acender a paixão pelo saber nos seus alunos implica que o professor viva ele próprio apaixonado pela leitura, pelas artes plásticas, pela ciência, pelo teatro, pelo cinema, pela música, pelo melhor que a vida tem para nos oferecer.
No entanto, a palavra paixão não faz parte do oficio, em geral canhestro e básico, de um gestor e, hoje em dia, muitos professores arriscam-se a afastar-se cada vez mais do saber, não passando de meros gestores da aquisição de saberes descartáveis.
Vem isto a propósito do trabalho com crianças à volta da poesia. Muitas vezes, nas nossas escolas, cai-se num equívoco perigoso que é o que confundir poesia com rima e com uso e abuso do lugar comum mais ou menos bem intencionado.
A poesia está muito para além disso. Situa-se num espaço de relação sempre nova e sempre arriscada com a palavra. Talvez não seja difícil trabalhar poesia com crianças. Mas é certamente violento, porque esse trabalho sai fora das boas intençõezinhas e do pequenino bom senso. A palavra poética rasga o mundo, vai ao fundo inquieta e exalta.
Não conheço muitas experiências de verdadeiro mergulho na alma da poesia com crianças. Esse mergulho é lento e exige um trabalho continuado sobre essa matéria complexa que é feita de afectos e emoções.
Há muitos anos a minha querida amiga Maria Rosa Colaço publicou “A criança e a vida”, um livro maravilhoso de poesia, poesia verdadeira, grande poesia escrita pelos meninos pobres da sua sala de aula de uma escola primária. Vai na 43ª edição. O primeiro poema do livro, escrito por um menino de 9 anos fala assim do amor.
O amor
é um pássaro verde
num campo azul
no alto da madrugada
Vítor Barroca Moreira
9 anos
Neste último ano estive ligado a duas experiências de trabalho sobre poesia em duas escolas do 1º ciclo. Apesar de breve, a experiência foi muito rica. Deixo aqui dois poemas e uma pequena homenagem às professoras que agarraram essa experiência, esperando que tenham a possibilidade de a continuar. Não sei se os meninos que passaram por este trabalho virão a ser poetas. No entanto, é muito provável que venham a ser leitores de poesia e pessoas um pouco mais capazes de dialogar com as suas emoções.
Quando estou triste
as nuvens tapam o sol dentro de mim
e as paredes apertam-me
e os meus olhos deitam um mar de escuridão.
Mas de repente
o sol regressa
e os seus raios abraçam-me
e os pássaros cantam à minha volta.
Susana, Inês, Rafael,
Escola do 1º Ciclo da Venda do Pinheiro
Professora Susana Lopes
Eu sou um pássaro
chamado Noite.
Eu sou um pássaro a voar
no meio das cinzas pretas e secas
de um rosto imundo.
Ou uma tesoura a cortar
um lápis preto.
João Marreiros
Escola do 1º Ciclo da Av. Heróis do Ultramar, Évora
Professora Rita Carrapato
(Texto publicado no nº 5 da revista Perspectiva, Setembro/07)
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3 comentários:
Boa tarde!... Só para dizer que foi, é e será um PRAZER trabalhar consigo!
Susana Lopes
Estou a exerimentar entrar pela primeira vez no mundo dos blogs.
Obrigada pela homenagem.
Rita
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