quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A PORTA


Faz por agora 25 anos que escrevi "A Porta". Ainda é hoje, entre tudo o que escrevi, o livro que mais me entusiasma e emociona.

Tem muito que ver com uma infância e uma juventude em que saltitei de casa em casa e em que sonhava com uma onde ficasse, uma casa amiga, um sítio de consolo, onde coubesse tudo o que as palavras e a imaginação podiam fazer acontecer.

O meu grande amigo João Mota gostou do texto, transformei-o em texto de teatro e o João encenou-o com o talento que todos lhe admiramos. Fui ver um enaio há 15 dias e chorei que nem uma Madalena. Estou ansioso pela estreia no próximo sábado dia 1

É um texto que não tem uma idade-alvo. Ou melhor tem todas todas as idades-alvo. É dos 5 aos 555 anos.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

ECONOMIA, POESIA E AMIZADE



Sempre que me meto com a falta de sensibilidade e cultura dos gestores e dos economistas recebo um mail ou um SMS do meu amigo Nicolau Santos a embrar-me que há economistas que lêem poesia e até há os que escrevem e dizem poesia como ele próprio.

É uma excepção, penso eu. Mas talvez não seja único. Talvez haja outros economistas e gestores que têm outros caminhos para entender o mundo que não sejam apenas as estatísticas e os computadores.

A página semanal do Nicolau no supolemento de economia do Expresso é uma exemplo delicioso em que ele sempre junta poesia ao seu comentário sobre economia.

E eu gosto de lhe dizer que enquanto houver uma economista que goste de poesia, há uma réstea de esperança para este mundo tão tristemente neo-liberalizado.

E aqui deixo um poema do Nicolau do último livro que escreveu a meias com o António Costa Silva.

ANTES ERA A WALL STREET


Nos anos 80 escrevi um poema a dizer:

A Wall Street é uma rua estreita.
E comprida.
Tão comprida que atravessa o meu país.

Nos anos 90 adoptei o poema.

A Castellana é uma avenida larga.
E comprida.
Tão comprida que atravessa o meu país.

Agora está na altura de escrever:
O Bundestag é um edifício muito grande.
E pesado.
Tão pesado que esmaga o meu país.


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

MÃOS NO CHÃO E PÉS NO AR


Com o excelente amigo e músico Daniel Completo fizemos um livro de canções e poemas para crianças dos 3 aos 11/12 anos.

O livro saiu há 4 ou 5 dias. O espectáculo já está na estrada há pouco mais de um mês.

Quem quiser adquirir o livro pode fazê-lo atrabés do site abaixo e ser-lhe-á enviado pelo correio.


http://www.cantodascores.com/#!livros/mainPage

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

POETAS & MAÇONS - ALMEIDA GARRETT


Almeida Garrett, personagem de grande dimensão intelectual, literária e política.

Grande vulto do romantismo português, poeta e dramaturgo, político liberal, conhece a prisão, exilado várias vezes, criador do Teatro Nacional D. Maria II e do Conservatório, dedicando-se com empenho às actividades maçónicas.



A um Amigo

Fiel ao costume antigo,
Trago ao meu jovem amigo
Versos próprios deste dia.
E que de os ver tão singelos,
Tão simples como eu, não ria:
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.

Que sobre a flor de seus anos
Soprem tarde os desenganos;
Que em torno os bafeje amor,
Amor da esposa querida,
Prolongando a doce vida
Fruto que suceda à flor.

Recebe este voto, amigo,
Que eu, fiel ao uso antigo,
Quis trazer-te neste dia
Em poucos versos singelos.
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

POETAS & MAÇONS - MARQUESA DE ALORNA

A Marquesa de Alorna, poetisa conhecida por "Alcipe", foi uma intelectual de rara dimensão, com reconhecimento em Portugal e na Europa do séc. XVIII.

Atribui-se-lhe a introdução em Portugal da chamada Maçonaria de Adopção. conspiradora contra Napoleão, e mostrou ser um alto espirito a que Alexandre Herculano chamou a Madame Staël portuguesa e grande vulto das nossas letras na transição do velho para o novo regime.



Se me aparto de ti, Deus da bondade,
Que ausência tão cruel! Como é possível
Que me leve a um abismo tão terrível
O pendor infeliz da humanidade!

Conforta-me, Senhor, que esta saudade
Me despedaça o coração sensível;
Se a teus olhos na cruz sou desprezível,
Não olhes para a minha iniquidade!

À suave esperança me entregaste,
E o preço de teu sangue precioso
Me afiança que não me abandonaste.

Se, justo, castigar-me te é forçoso,
lembra-te que te amei, e me criaste
para habitar contigo o Céu lustroso!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

POETAS & MAÇONS - JOSÉ GOMES FERREIRA

Seu pai terá sido maçon e deu inclusivamente terrenos seus para a construção do Lar dos Inválidos do Comércio.

José Gomes Ferreira, nascido em 1900, poeta grande, terá seguido o pai como maçon nos tempos da República. ´

Na sua poesia, a militância alia-se a um gosto poético com raízes de mistério, tingido por influências do surrealismo.



JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-1985)



PANFLETO CONTRA A PAISAGEM

(Futuro: este poema foi cortado pela Censura na revista «Vértice» de Coimbra. Acontecia isto no tempo do tiranete Salazar.)

Apaga-te, lua!
- lâmpada dos lírios e dos cães.

Não finjas de alma
esta realidade violenta
que me dói até às raízes.

Não pintes de mistério
estas bocas de fome
onde só há metafísicas de pão negro.

Não abras asas
na planície das pedras
de fogo apodrecido.

Apaga-te lua!
Peço-te que te apagues!
Para os tímidos poderem amar-se à vontade na sombra sem olhos,
para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas às castelãs de carne invisível,
para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo da noite,
para os trémulos morrerem heróicos em barricadas de imaginação,
para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão verde dos caixotes,
para os cegos dizerem: «Não vemos porque não há luar!»,
para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a arrastar mantos negros,
para os escorraçados saírem dos canos lôbregos
e forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
onde só os pobres deitaram moedas falsas,
para os visionários mergulharem as mãos na noite
em busca de outra lua sem vincos de caveira,
para as mães das caves convencerem os filhos: «Moramos num palácio às escuras»...


Ouviste, lua?
Apaga-te!
- lâmpada dos cães e dos poetas magros.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

POETAS & MAÇONS - FERNANDO PESSOA

Fernando Pessoa, o poeta maçon que ao que se sabe nunca foi iniciado nos mistérios da maçanoria e, no entanto, conhecia-os a fundo

Famosa é a sua carta a Salazar quando o ditador proibiu as organizações secretas e, nomeadamente, a Maçonaria.

Vários são os poemas em que Pessoa navega nas subtilezas esotóricas dos conhecimentos maónicos como no caso deste que transcrevo.



FERNANDO PESSOA (1888 – 1935)


EROS E PSIQUE


... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio
na Ordem Templária de Portugal

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

sábado, 25 de janeiro de 2014

POETAS & MAÇONS - VITORINO NEMÉSIO





VITORINO NEMÉSIO (1901-1978)


VERBO E EQUÍVOCO



Chamo verbo ao equívoco falado
Que em tábuas decorei de tempo e modo,
Mas o Verbo é unívoco e sagrado,
Junto a Deus, mesmo Deus, único e todo.

Lá do sempre arrancando e nunca nado,
O eterno abarca o mundo e a vida a rodo:
É no que foi e no devir, tornado
Por amor novo Adão, limpo de todo.

Desse Verbo de que falo, mal declino
O caso do meu nome, nele divino;
Anónimo, sem ele, vagueio mudo:

Mas, chamem-no os vestígios da parábola,
E brilho como a pérola da fábula,
Homem, menos que nada e mais que tudo.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

POETAS & MAÇONS - CAMILO PESSANHA

Outro Poeta que também foi maçon e, ao que sei integrou a Loja Luís de Camões em Macau





CAMILO PESSANHA (1867-1926)



CAMINHO II

Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a viagem é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a descansar, eu descansei...
Na venda onde poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário,
Corta os pés como a rocha de um calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

domingo, 19 de janeiro de 2014

POETAS & MAÇONS - BOCAGE

Maçon num tempo em que a maçonaria ganhava grande popularidade entre as elites portuguesas, Bocage anunciou com o seu coração de poeta os primeiros alvores do romantismo, propagando os ideais fde liberdade, igualdade e fraternidade, saídos da Revolução Francesa, e que tão caros foram aos maçons de todo o mundo.


MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE (1765 – 1805)


ASPIRAÇÕES DO LIBERALISMO, EXCITADAS PELA REVOLUÇÃO FRANCESA, E CONSOLIDAÇÃO DA REPÚBLICA EM 1797

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim)! porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

De santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia:
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo:

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso numen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

POETAS & MAÇONS - TEIXEIRA DE PASCOAES

Continuando a visita por poetas que eram simultaneamente maçons, teixeira de pascoaes com o seu lirismo cheio de uma espiritualidade telúrica.



TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)


OS MEUS OLHOS E UMA PEDRA

Porque é que vós, meus olhos, de repente,
Comovidos, ficais, a contemplar
Uma pedra qualquer, se toda a gente
Era incapaz de nela reparar?

Uma pedra gelada, inconsciente,
Que nada vê; mas vosso claro olhar
Cobre-a de tal ternura, que ela sente
Como um calor de vida a despontar...

E uma oculta visão misteriosa
Transparece na pedra, que, medrosa,
Avista um indeciso nevoeiro...

Ah, foi decerto assim que a luz dos céus,
A luz que vem do Sol e vem de Deus,
Ergueu da terra, um dia, o ser primeiro!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

POETAS & MAÇONS - ANTERO DE QUENTAL

Foram muitos os poetas maçons ou os maçons poetas. Cito alguns:

Marquesa de Alorna
Bocage
Filinto Elísio
Almeida Garrett
Camilo Castelo Branco
Feliciano de Castilho
Antero de Quental
Jaime Cortesão
Teixeira de Pascoais
Camilo Pessanha
Vitorino Nemésio
José Gomes Ferreira

Para muitos será surpreendente esta lista a que há que acrescentar Fernando Pessoa que não deixando qualquer evidência sobre a sua eventual iniciação e participação nalguma Loja Maçónica concreta, era um maçon de convicção e vasta cultura maçónica como o atestam os muitos textos e poemas onde essa cultura circula, nomeadamente a famosa carta a Salazar em que fortemente contesta a proibição da Ordem Maçónica.

Sabemos que é muito diverso o grau de empenhamento no trabalho maçónico destes poetas. Alguns dedicaram-lhe de alma e coração parte importante das suas vidas. Outros não terão passado da Iniciação ou pouco mais.

Vou trazer para aqui alguns poemas, tentando entender o que é que pode haver de comum entre a condição do poeta e a do maçon.


ANTERO DE QUENTAL (1842 – 1891)



MAIS LUZ !



Amem a noite os magros crapulosos,
E os que sonham com virgens impossíveis,
E os que se inclinam, mudos e impassíveis,
À borda dos abismos silenciosos...

Tu, lua, com teus raios vaporosos,
Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,
Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,
Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo,
E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro sol, amigo dos heróis!

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

BOM ANO NOVO ATRASADO MAS SINCERO

Há coisas assim, Em forma de assim. Esta era a mensagem que eu queria ter enviado no dia 1. Ficou no tinteiro, mas cá vai, atrasada mas vai.

Para trazer de novo a Teresa Rita Lopes a dar notícia da luz dos seus olhos e da dança das palavras na ponta do seu lápis.

Poesia também é isto: dar notícias. Notícias de um perfume, de uma imagem, de uma mão, de um Ano que começa.

Bom Ano para todos

BOM ANO NOVO!


Muito quietinhos
e muito quentinhos
(os que têm com
que fazer calor)
os portuguesinhos
votam – coitadinhos!
por um Ano Novo
de paz e amor!

Até Dona Merckel
baixa o tom de voz
até à compaixão
pra falar de nós
na televisão.
Ela sabe bem
que no ano que vem
será o funeral
do jardim plantado
à beira do mar
- “pais adiado
à procura de vez”
dizia o O’Neill
poeta português
que lembrou também :
“Neste país em diminutivo
respeitinho é que é preciso!”

Só que nesse então
tínhamos o azar
de ter Salazar
.como nosso algoz.
Agora já não
mora cá na terra
o nosso patrão
mas tem cá um cão
por sinal feroz
que cuida de nós
isto é, um governo
com a vocação
de meter a mão
no bolso dos pobres
que dos ricos não!
A nossa nação
respeita o ladrão
de mais de um milhão!
Se for de um tostão
vai para a prisão.

Que ricos que somos
De rimas em –ão!
Nosso Portugal
nisso é campeão!
Pena que não sirvam
para exportação
que assim nossa crise
tinha solução!

Teresa Rita Lopes

domingo, 5 de janeiro de 2014

OS POETAS DE QUEM NÃO SE FALA MUITO

A poesia tem modas Há poetas de quem fica bem falar-se e ter-se opiniões definitivas em certos locais e em certas páginas de jornal mesmo quando não se leu a sua obra.

Eu gosto de lembrar os poetas de quem não se fala muito. Poetas. Sabem, meus amigos, o que são poetas? Gente perigosa. gente que cabe mal nos fatos por medida.

Este é um dos poetas de que se fala muito pouco e de que eu gosto de lembrar.


A PULGA

Um ponto somente
é este animal
que pouco se vê
e muito se sente.

E a gente não gosta
da pulga.
Porquê?
A pulga,
afinal,
só de animais gosta
e gosta
da gente.

A gente que o diga…
Gosta, morde e pica.
Mas que rica
amiga!
Pica
por ser má?
Pica
por prazer?
Lá prazer terá,
sabe-se isso bem…
mas, se a pulga
pica,
é para comer,
não mata ninguém.

O pobre animal
precisa de sangue…
Mas é natural
que a gente se zangue.

Quem dera apanhá-la,
mordê-la,
pisá-la!

Vai a gente ver
e ela
já se foi…
e sempre a morder.

Será que ela
julga
que aquilo não dói?

E assim é a pulga:
maluca, malvada,
mas tão pequenina,
ladina e rabina,
que a acho engraçada.

Leonel Neves, “O elefante e a pulga”, Livros Horizonte

domingo, 29 de dezembro de 2013

UM CAVALO DE VÁRIAS CORES



Reinaldo Ferreira, filho do famoso Repórter X, nasceu em Barcelona e morreu em Lourenço Marques antes dos 40 anos.

A sua poesia colorida e musical não chegou a ser publicada em vida. Muito referido nos anos 60/70, está agora de novo entregue ao esquecimento, tendo sido em tempos emparceirado, algo exageradamente, com Fernando Pessoa. Muitos dos seus poemas foram cantados por autores como Manuel Freire ou Fausto.




QUERO UM CAVALO DE VÁRIAS CORES


Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva – nimbos e cerros –
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?


sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

QUE BELA "GAVETA DO FUNDO"



Às vezes acontece: aparece um poema que nos bate no peito e nos faz parar no meio do bulício emaranhado dos dias. E torna-nos melhores. Mais felizes. Mais gente.Neste caso não é só um poema, é um livro inteiro. Um luxo, neste tempo de fraca poesia. É o caso desta "Gaveta do fundo" do escritor transmontano A. M. Pires Cabral, dado à estampa numa recente e bela colecção de poesia (parabéns pela coragem à Tinta da China, editora, parabéns ao Pedro Mexia, coordenador).

Livro de grande maturidade, de amor à terra, de balanço de uma vida. Li-o emocionado, por vezes comovido. E acredito que esta é a poesia que vale a pena. A que emociona e nos leva para um patamar superior da música das palavras.


AOS MEUS ÓCULOS

Se um dia vos partirdes ficarei
mais à mercê do escuro.

Provavelmente poderei então
nem ler nem escrever nem cortejar
as flores silvestres, as nuvens em castelo,
os pardais disputando uma migalha
- esses frustes amores de fim de tempo.

Deixarei de poder distinguir
um abismo de um simples degrau.

Por isso, vós que sois de vidro quebradiço
como o meu próprio barro,
cuidai-vos em nome de mim.

Paguei-vos, sois meus, deveis-me utilidade.

Faça-se em vós segundo
a minha vontade.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

BEM HAJAS POR VIRES TODOS OS ANOS, MENINO


A Teresa Rita Lopes enviou este poema de Natal aos seus amigos, entre os quais me conto com orgulho

Gosto muito da sua poesia. Professora universitária de grande prestígio, académica distinta e distinguida, uma das maiores especialistas em Fernando Pessoa, Teresa Rita Lopes não se perde em tiques, escreve como quem respira, como quem devolve à terra a sua frescura e aos seres humanos o melhor da sua humanidade.

Gosto muito da sua poesia e sinto-me privilegiado pela sua amizade. Por isso partilho a beleza sencilha do seu poema.

De presépios gosto
desde menina.
De construir por minhas mãos um pequenino mundo
a meu jeito.
A moda do Pai Natal só veio mais tarde
assim como a da Árvore de Natal.
Com ele nunca engracei
postiço das barbas até à barriga.
Quem trazia presentes à minha infância era o Menino Jesus
- cedo percebi que era uma maneira de dizer
como as fadas.
Como podia alguém como eu descer pela chaminé
sem se sujar nem se aleijar?!
Da Árvore de Natal só gosto por ser árvore
e verde.
(Pensar que as há de plástico!)
Hoje tenho presépios pela casa toda
todo o ano!
Que vou comprando por onde ando.
O meu Menino Jesus gosta de ser muitos
e de diferentes sítios como o Pessoa!
No Natal limito-me a actualizá-los com musgo.
E líquenes. E pinhas que trouxe ontem da Fonte do Sol.
Povoo esse mini-mundo também com conchas
que combinam com a cor do barro rosado
do presépio de Viana.
Mas do que mais gosto
é do musgo:
cheira a terra molhada
a verde
a vida.
Sorrio para o Menino (o mesmo em todos os presépios)
e digo-lhe:
Bem hajas por vires todos os anos
festejar com os homens o dia dos teus anos!
Invento para ti mundos simples e pacíficos
para eles se envergonharem das suas ambições
e guerras.
Ámen.

Teresa Rita Lopes


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

NATAL DE 2013 - PORQUE ELES SABEM O QUE FAZEM


NATAL DE 2013



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN



AS PESSOAS SENSÍVEIS


As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

domingo, 22 de dezembro de 2013

BOM NATAL

Não sei se o Natal era melhor neste tempo. É provável que não.

Estávamos ligados pela palavra que era levada nas cartas e postais pelos CTT.

Sempre tive simpatia pelos CTT. Faziam parte da nossa vida. Sempre gostei de receber cartas e enviar cartas. Aerogramas com letrinha cuidada para o meu Pai em Moçambique e Angola, postais enviados a meio da semana do Colégio Militar para a minha Avó e a minha Mãe, cartas adolescentes para as amigas, namoradas, correspondentes, na Suécia, no Brasil, a Austrália, os relatos assombrados sobre os tempos em que fui arquitecto na Guiné ou guionista em Cabo Verde, os abraços aos amigos nos aniversártios e nas Festas.

Às vezes punha as cartas nos marcos de correio, outras nas próprias estações. E sabia que mais cedo ou mais tarde o carteiro havia de ir entregar a minha carta a pé ou de bicicleta.

Agora temos os mails e os SMS's. Não é melhor nem pior. Perdemos o gesto, o desenho da letra e o seu afecto. É diferente. Mas o importante são mesmo as palavras, a sua doçura e a sua magia.

De qualquer maneira, lá que tenho pena que os CTT já não sejam os nossos CTT, tenho.

sábado, 14 de dezembro de 2013



PINGA O PINGO

Pinga o pingo da torneira
Pinga pinga
Pinga o pingo
Que amanhã já é domingo
E depois segunda feira
Pinga o pingo da torneira
na banheira
terça feira
quarta feira
Pinga de toda a maneira
quinta feira
sexta feira
Falta pouco p’ra domingo
Pinga o pingo
Pinga pinga
Pingo o pingo da torneira.

José Fanha (1951)
“Cantigas e cantigos para formigas e formigos”, Terramar