sábado, 31 de maio de 2014

O TIGRE

O TIGRE

(Sobre uma pintura de Júlio Pomar)

“… este é um sonho, uma pura diversão da minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou causar um tigre.”

Jorge Luís Borges


Posso causar um tigre.

E dizer um tigre.

E como Borges posso
abrir a cegueira ao tigre.

Vem, tigre.

Esta casa não é só a minha selva.
Aqui podes rugir
e experimentar a cor.

Aqui podes fugir ao destino
com que a nossa mãe natura
te aprisionou a pele às grades.

Aqui poderás para sempre
ser apenas tigre.
Sumptuosa faísca a rasgar a noite.
Raio
relâmpago fendendo o ar
arco voltaico
curva eléctrica
pássaro de tinta
cálice de pura geometria
em cada salto.

(De "Marinheiro de outras luas" a sair em breve)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

AS COISAS SIMPLES

AS COISAS SIMPLES


(Sobre pinturas de Nuno de San Payo)


Gosto das coisas sólidas. Sem brilho.
Coisas de linho ou de pedra
desmesuradamente agarradas ao chão.

Gosto das coisas brancas
lavadas pelo ar fresco da manhã
e varridas pela memória recente
da espuma, do sal ou da gaivota.

Coisas simples e serenas:
o pão quente e farto, o café tomado em família,
as meninas chilreando sobre a relva
ao sol da primavera.

Gosto da música suave que,
quase sem de si nos dar presença,
se desprende levemente
de uma flor irrepetível.

Gosto dos pequenos gestos,
os simples, tranquilos e altivos gestos.

Gosto de saber que essa altivez
transporta um incêndio discreto,
um canto de alaúde, um perfume de alfazema.

Gosto das coisas simples, sólidas serenas:
um momento de obscura comoção, um resto de luz
a estender-se na mesa,
a folha de jornal já lido que se desprende e vai
na desmedida ambição
de se tornar borboleta.


José Fanha

(de "Marinheiro de outras luas", a publicar)

domingo, 25 de maio de 2014

AZUL

AZUL


(Sobre uma pintura de Pedro Chorão)


Falei, falo, falarei
de um tempo azul, um tempo transparente,
um tempo de traineiras cheias de alegria e prata.

Falei, falo, falarei
de um tempo de telhados preguiçosos,
um tempo obsessivamente azul
com a Primavera a pousar
no tímido suspiro das rosas
pela manhã.

Aprendo uma e outra vez
como é diferente o tempo azul em cada idade,
em cada inquietação,
em cada tempo.

Relembro
o carrossel de todos os azuis,
nos rasgões da herança sonâmbula
que os deuses deixam
a quem queira desvendar os caminhos obscuros
desta vida.

Relembro o primeiro azul na cicatriz polar,
o índigo com seu corpo de caju e peixe seco,
o azul dos meus 6 anos na ilha de todos os piratas,
o azul Neruda, Ilha Negra, Patagónia,
o altivo e frio azul
no rosto de porcelana
das dinastias chinesas.
E o triste, o negro azul
das plantações de algodão.
E o mentiroso azul argentino,
escondendo em si o tango que é vermelho,
feito de veludo ou vinho
ou sangue coalhado.

Cada azul acorda vestido de outras sedas.
Cada azul carrega seu navio, seu mar, seu sonho,
seu cardume de espigas e searas,
sua pequena azeitona no bolso do coração.

De todos os azuis que visitei
guardo no mais doce da lembrança
o azul dos rodapés das casas alentejanas,
o azul da digna respiração das casas alentejanas,
o azul com que as casas alentejanas
oferecem, em cada sombra, um mar inventado
à dolorosa secura do chão.


José Fanha

(DE "Marinheiro de outras luas", a publicar)


(Pintura de Pedro Chorão)

quinta-feira, 15 de maio de 2014

SERRA DA LUA


SERRA DA LUA


Sou exactamente como o vento
um homem que nascesse
do húmus do poema
ou de um ninho de pedras
e subisse até ao alto
sobre um chão de sombras e sussurros.

Sou um homem
que pára passo a passo em cada verde irmão
e toca o tronco de ciprestes e abetos
castanheiros
para ouvir nas suas verdes veias
o som da sílaba que voa
na breve respiração do mundo.

Serei um dia como eles
vegetal ou mineral
mas hoje sou um homem que caminha
com braços de vento
um homem a subir a Serra
com um saco onde recolhe silêncios e cristais
e o bater de asas das mais pequenas aves
e as gotas inquietas de uma luz envergonhada.

Sou um homem
que juntando tudo e nada
no ofício do olhar
vai traçando uma palavra e outra e outra
uma música redonda e circular
um delírio de águas
a descer para cima até ao alto
muito para lá das brumas
que vêm engolir telhados e janelas
e apagar castelos
palácios
e vaidades.´

Sou um homem
que depois de todo o chão
ainda sobe
através do ar puro e prateado.
Um homem
ou um vento feito de sonhos
de ossos
nervos
e de incertos passos.

Um homem
que vai para lá da Serra
e sobe até tocar
a lua branca
a grande mãe
a forja de todos os mistérios
que habitam o nosso sangue.

José Fanha

segunda-feira, 12 de maio de 2014

ERRÂNCIA

ERRÂNCIA


Tu que nasces hoje ou amanhã,
António ou Manuel
ou seja qual for o nome
de vento
que em lusa língua te for dado,
serás marcado
com o ferrete da distância.

Seja o teu olhar de barro ou de granito,
buscarás para sempre
a estrela ou a palavra
que te entregue o corpo ao mar.

Aí acenderás o lume e serás abandonado
à tua condição de viajante,
trabalhando eternamente
sobre os mapas justos e perfeitos
onde se traçam as rotas para chegar
à mais bela de todas as ilhas inexistentes.

José Fanha


(Pintura de Lima de Freitas)

sábado, 10 de maio de 2014

UM POEMA PARA ESCREVER

UM POEMA PARA ESCREVER

Tenho um poema para escrever
à sombra de um salgueiro.

Um poema
um comboio de memórias
que me sai dos olhos
a caminho da estação da luz.

Tenho um poema para escrever
e uma mão para escrevê-lo.

Um poema,
rosa, peixe ou ave,
um poema
um rio de palavras
que me una
ao palpitante coração da terra.

José Fanha

quarta-feira, 7 de maio de 2014

EU NESSE TEMPO

EU NESSE TEMPO


Eu nesse tempo voava
tanto quanto me permito recordar.

Coleccionava bonecos
e cromos para colar
e mitos
e voava no espaço da sala
evitando sair pela janela.

O mundo era enorme
terrível
e eu voava.

Ainda hoje por vezes
a horas mortas
abraço o ar
e dou comigo a voar
afastado dos caminhos
para que não digam que as asas
são apenas ornamento

José Fanha


(Autor desconhecido)

quinta-feira, 24 de abril de 2014

25 DE ABRIL - POEMA DE PARABÉNS


POEMA DE PARABÉNS


- a quem, pelos 40 anos do 25 de Abril?
A ti, que como eu sofreste na pele
a orfandade da pátria
de acordar todos os dias
sem o seu colo materno
por mais pobre que fosse
sem o seu céu claro embora carregado
de ameaças.
A ti sobretudo que comeste o duro pão
da prisão
e a injúria de ser batido e humilhado
e impedido de dormir e até de te sentares no chão
desses dias sórdidos em que vomitavas
confissões até de coisas nunca acontecidas
para que deixassem o teu pobre corpo
se acoitar no sono.
A ti também, anónimo filho desta terra que então
ainda tinha aldeias e campos semeados
e rebanhos pastando e moinhos moendo
e pescadores pescando.
(Compraram-te o barco para não pescares mais
a enxada para deixares de cavar
o moinho para deixares de moer
e largaram-te errante
no campo de refugiados em que esta terra
se tornou
para que os ricos façam os seus ricos
negócios
no monumental casino que é o mundo
dos que mandam no mundo.)
Vivias de tão pouco
homem pré-histórico
de antes do 25 de Abril
moirejando
do nascer ao pôr do Sol
mas vivo filho da Vida
com um lugar nesta terra e no mundo.
Um dia recebeste e carregaste o caixão
e o luto do filho morto em combate
lá nessas longínquas áfricas
de que só para tua desgraça ouviste falar.
Parabéns ah sim a ti também! que abalaste a salto
para a estranja
que viveste em bidonviles
atolado em lama e tristeza
a trabalhar mais duro ainda do que na tua aldeia
mas mantendo o hábito de assobiar durante a faina.
Parabéns também a ti
filho desses párias
a ter vergonha de dizer na escola onde moravas
e que língua falavas
e a ti também a ti a da mala de cartão
a emigrar como os homens para ganhar o pão dos filhos
sem pai
a todos vós a todos nós
parabéns!
Os cravos da nossa Liberdade continuam símbolos
mas não deram fruto!
Todas as flores deviam frutificar
não servir apenas para enfeitar e cheirar bem!
Os nossos cravos tornaram-se mortos símbolos
de uma liberdade precária
que a história regista!
Os Capitães de Abril são
para os mais novos
jovens heróis de lenda
como o Homem Aranha!
Envelhecemos, nós, os que vivemos esses dias
essas mágoas, opressões e alegrias!
As imagens que temos desse tempo são fotografias
a preto e branco
por isso mais intensas!
Mas a nostalgia não compensa:
O elo que nos une quando digo Nós
o que é? Uma bandeira? Um mapa? Uma bola
de futebol?
O balbuciar de uma língua?
Que testemunho passar aos jovens que nos perguntam
o que foi o 25 de Abril?
Que casa é esta que lhes faz de lar?
Que futuro lhes preparamos?
Que herança lhes legamos?
Que família somos nós?
Deixamos impunes os gatunos domésticos
que metem ao bolso os nossos pobres cobres!
E aceitamos
de braços caídos
a derrota perante a Finança Internacional
- esse Dragão das mil cabeças que governa o mundo.
Que Nós é este que nos faz de pátria?
Que Nós é este que nos faz de Mundo?

Teresa Rita Lopes

quarta-feira, 23 de abril de 2014

SÉRGIO GODINHO OS VAMPIROS

Há coisas que nascem perfeitas. A colher, por exemplo. Diz o Unberto Eco, e creio que tem razão, que é um objecto com milhares de anos que nunca sofreu alteração desde que foi inventada. Nasceu perfeita Para comer a sopa não tem alternativa.

Há cações que também parecem nascer perfeitas. Não admitem outras versões, outras tonalidades, outros arranjos.

Para mim era o caso de "OS VAMPIROS", a actualíssima canção do Zeca Afonso No entanto, o talento do Sérgio Godinho deu origem a uma nova, fortíssima e emocionante nova versão.

Precisamos de voltar a chamar os bois pelos nomes. Os bois, quer dizer, os vampiros que assolam o nosso país.


segunda-feira, 21 de abril de 2014

CALAI-VOS QUE PODE O POVO...

António Aleixo foi cantado antes, durante e, de novo, depois de Abril. É uma luz na poesia portuguesa. Uma luz que acende a palavra liberdade.


Há tantos burros mandando
Em homens de inteligência,
Que às vezes fico pensando
Que a burrice e uma ciência!

Engraxadores sem caixa
Há aos centos na cidade
Que só usam da tal graxa
Que envenena a sociedade

Vós que lá do vosso império
Prometeis um mundo novo
Calai-vos, que pode o povo
Querer um mundo novo a sério.

sábado, 19 de abril de 2014

NÃO VERGUES O DORSO

João Apolinário foi um destacado militante anti-fascista tanto em Portugal como no Brasil onde se exilou.

Os seus poemas mais conhecidos foram musicados pelo filho João Ricardo e gravados pelos famosos SECOS e MOLHADOS onde começou também Ney Matogrosso.

Este poema creio ser inédito e foi-me dado a conhecer pelo meu amigo Adelino Castro, editor da lÁPIS DE MEMÓRIA.

POEMA

Não vergues o dorso
não estendas a mão
não faças o esforço
da tua razão

Recusa esse preço
confere a balança
e pesa do avesso
o avesso da esperança.

O valor que te dão
pela venda - rejeita -
é a troca de um grão
por toda a colheita

A moeda corrente
só terá valor
se incluir a semente
e dividir a flor.

(1961)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

COISAS QUE NÃO HÁ QUE HÁ


O Manuel António Pina escreveu alguns dos mais deliciosos textos e poemas para a infância. "Gigões & anantes", "OTêpluquê" e vários outros.

Era um grande poeta. E um homem de bem. Publicou um livro de poesia para meninos. Talvez não só para meninos. Poemas para gente capaz de se encantar com a maravilha das palavras quando são bem tratadas. "O PÁSSARO NA CABEÇA". É obrigatorio em todas as casas, em todas as bibliotecas, em todos os cantos onde se faça viver a poesia



COISAS QUE NÃO HÁ QUE HÁ

Uma coisa que me põe triste
é que não exista o que não existe
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já houve e já não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num lugar onde só eu via...

terça-feira, 15 de abril de 2014

EM ALCÁCER ERAM VERDES


Este poema foi uma bandeira nos tempos a seguir ao 25 de Abril, nos tempos em havia que bandeiras, nos tempos tão breves em que Portugal respirava.

O Joaquim Pessoa escreveu o poema. O Carlos Mendes fez a música. Quem não traz esta Alcácer que vier no coração?


ALCÁCER QUE VIER

Em Alcácer eram verdes
as aves do pensamento.
Eram tão leves tão leves
como as lanternas do vento.

Em Alcácer eram verdes
os cavalos encarnados.
Eram tão fortes tão negros
como os punhos decepados.

Em Alcácer eram verdes
as armas que eu inventei.
Eram tão leves tão leves
tão leves que nem eu sei.

Em Alcácer eram verdes
os homens que não voltaram.
Eram tão verdes tão verdes
como os campos que deixaram.

Em Alcácer eram verdes
as maçãs feitas de lume.
Eram tão frias tão frias
como as dobras do ciúme.

Em Alcácer eram verdes
estas palavras que agora
são tão caladas tão cernes
tão feitas desta demora.

Em Alcácer eram verdes
as flores da sepultura.
Eram tão verdes tãoverdes
tão verdes como a loucura.

Em Alcácer era verde
meu amor o teu olhar.
Era tão verde tão verde
quase à beira de cegar.


Em Alcácer eram verdes
os lençóis onde morri.
Eram tão frios tão verdes
como os campos que eu não vi.

Em Alcácer eram verdes
as feridas do meu país.
Eram tão fundas tão verdes
como este mal de raiz.

domingo, 13 de abril de 2014

PODERÍAMOS TER COMEÇADO A APRENDER...

O Amadeu Baptista é um poeta com vasta obra publicada em várias línguas e com uma impressionante lista de prémios.

Poeta de Abril, também na sua poesia aparece esta dor de um Abril por cumprir.


AMADEU BAPTISTA

25 DE ABRIL DE 1974


A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender
[a crescer
e a desafiar os enigmas puríssimos da palavra liberdade
[ - no auge da paisagem
a ave indócil a que não renunciámos
é um símbolo fortíssimo contra os símbolos precários,
[os malogros
antigos,
a fome a que nos querem condenados
sempre que a morte ronda e o exílio
dói
como um cravo recentemente apunhalado.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender
[a enfrentar o medo
que durante tanto tempo nos manteve separados
sem que soubéssemos como e quando acabaria – na
[terra e no amor
brilham profundamente as lágrimas dos pobres
e o sangue é uma flor misteriosa
que floresce de súbito
quando um grito se ouve no deserto
e uma gaivota volta
para nos contactar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a
[distribuir o coração
e a partir nesse barco em busca de límpidas aventuras
onde enfeitássemos a vida com sonhos realizáveis
e a solidão fosse completamente impossível – o
[silêncio abria-se
num manancial de palavras profundamente comovidas
[que nos enchiam de ternura
e nos aproximavam
dos incontáveis registos da fraternidade, a noite
era expulsa para sempre
e os braços davam-se e ardiam.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender
[que a felicidade
é algo muito mais tangível do que o que nós
[pensávamos
se se constrói pedra a pedra e palmo e a palmo se
[conquista
quando uma vontade solar e a solidariedade
não deixam ninguém ficar desprevenido – o assombro
principia a exercer o seu poder admirável, chega como
uma chuva benigna com o perfil da paz, tem o odor
interminável
da alegria.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender
[a conjugar um futuro
um pouco mais perfeito, a erguer
a cabeça, a defendermo-nos
das múltiplas armadilhas que o ódio arma –
[entrávamos pela manhã
ainda com maior vitalidade
e com um pouco do azul da primavera progredíamos
como um par de namorados:
a proliferante espontaneidade dos seus beijos
transformaria o mundo…

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender
[que a frescura
é um bem vertiginoso que é necessário preservar cada
[vez mais
e que não basta a um homem
o benefício das mãos limpas perante a enternecedora
[figura de esperança
quando os lobos são os mais acérrimos inimigos da
[exclusiva claridade que há nas praias
e com falsos dentes de oiro esperam um mínimo
[descuido
para que possam destruir de um só golpe os sonhos e a
[beleza
de quem abre as portas de par em par a bens muito
[maiores
para que a volúpia entre e alvorece o ar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender
[a agir conclusivamente
sobre o passado, a prevenir
o mal do desencanto.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

NÃO POSSO ADIAR O CORAÇÃO


Amar era proibido no regime salazarista. Ofendia a boa moral, a pouca vergonha encapotada de moral, a moralo como instrumento de dominação.

Amar, amar a sério, amar intensamente, amar deslumbrantemente à luz do sol sempre foi uma ofensa aos ditadores. O corpo sempre foi um lugar de interditos mesmo quando reina como agora a pornografia das casas dos segredos e outras que tais

Amar à luz do dia era uma forma de rsistência. Como aqui no-lo mostra António Ramos Rosa com um poema de 1960.



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

quarta-feira, 9 de abril de 2014

A MOSCA E O MOSQUITO


Abril é mês de poesia. De toda a poesia. Também da poesia para meninos. E quem desistir de ser menino tem, também, provagvelmente, de desistir da poesia.

Aqui temos um poeta de Abril, que muito escreveu para meninos.

A mosca olhou
o mosquito
e não gostou.
O mosquito prometeu
eu grito!
E gritou
Então a mosca fugiu,
e o mosquito
nunca mais a viu.

(O que a mosca não sabia
é que o mosquito não falava
nem gritava: só zumbia).


segunda-feira, 7 de abril de 2014

PARA QUÊ POETAS EM TEMPO DE INDIGÊNCIA?

Não sei se os poetas da minha geração têm o cimento humano, ético e estético que faz uma geração literária. Mas têm em comum ter vivido os tempos de mudança e poesia, de sonho e respiração colectiva, de decência e paixão, que foi o 25 de Abril.

O meu amigo Luís Filipe Castro Mendes é um poeta que sempre admirei nas várias facetas e degraus do seu caminho de poeta.

Traz-nos agora um belo livro profundamente desencantado. Belo porque doloroso, porque vai às entranhas, porque também para o Luís Filipe, creio eu, não era nada da bandalheira em que se transformou este país que sonhou para os seus filhos.



Levantar a gola do casaco,
esconder os punhos da camisa já puídos
e defender, com os dentes cerrados, as palavras:
mas quem aguenta mais este murmúrio vão,
que não colhe as flores do mal nem a luz radiosa na própria miséria?
Resistir, como sempre fizeram os humilhados.
Decorar palavras antigas.
Repeti-las, para que não sejam esquecidas,
aos vindouros.



sábado, 5 de abril de 2014

PÓ DOS LIVROS

Às vezes vida complica-se e o tempo estica, estica, mas não dá para tudo.

Este blog tem ficado para trás.

Mas cá estou de novo com livros e poesia e etc.

Hoje é para falar da magnífca livraria Pó dos Livros na Av. Marquês de Tomar em Lisboa.

É um espaço caloroso, um espaço de resistência cultural onde se fala de livros e se encontram livros difíceis de encontrar noutros sítios. Sobretudo poesia.

Volta e meia, mesmo quando não fica em caminho, sabe-me bem lá ir.

Fui lá hoje e trouxe dois ou três livros de poesia daqueles que não se encontram com facilidade António Ramos Rosa, Amadeu Baptista, ambos de uma nova colecção da editora lua de Papel (Parabéns Paulo, bela colecção), mais o último do meu querido amigo Jaime Rocha, edição Mão Morta.

Bem bom.