domingo, 30 de novembro de 2014
DORES
Alexandre O'Neill é um bom remédio para qualquer doença.
ALEXANDRE O’NEILL (1924-1986)
DORES
Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais.
In No Reino da Dinamarca, 1958
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
MORRI MIL VEZES
VALTER HUGO MÃE (1971)
o super homem
vesti o meu fato de
super homem por baixo da
roupa de todos os dias quando
fui ouvir o que o médico
tinha para dizer sobre a
operação da minha
mãe. eu morri mil vezes
quando a operaram, iam
partir-lhe o osso do peito e
isso é tão avesso ao que
espero dela. até digo às
crianças que não corram em seu
redor, tem quase setenta anos e
está cansada e não é bom que caia ou
sequer se aflija. partiram-lhe o
osso do peito. fizeram-no porque
é assim que se faz, dizem, e eu,
secretamente com o meu fato de
super homem, supostamente
preparado para tudo, morri mil vezes
e, mesmo depois das boas palavras do
médico, ando lento, tão atrasado
nas ressurreições
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
VENHA DOUTOR ENSINAR-ME
Três poetas se seguem e três poemas sobre doença.
ROSA ALICE BRANCO (1950)
IMAGERIE CEREBRAL
Venha doutor ensinar-me a distinguir
a emoção do sentimento. Guie-me para que a mente
se torne clara, o espírito lúcido e a alma
- ah, talvez possamos dispensar a alma.
Enquanto espero ficarei escondida no armário
entre a roupa de verão e a de inverno
terei calor de um lado, termerei do outro,
mas no centro o coração estará a boa temperatura,
a uma tépida esperança. Porém se demorar a imobilidade
mudará as estações da roupa, as fases da lua. Esta atracção
por si é uma maré viva, uma maré cega se não vier
ensinar-me o que é a emoção e o sentimento. Faremos
uma ressonância antes do chá, uma sonda perfurando
o insondável. Venha doutor dizer-me se sinto fome, se
tenho sede, ou se não passo de uma ilusão dos sentidos.
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
APETECE SER AVE
Foi um privilégio para quem o pôde ver no seu programa "Se bem me lembro" na RTP dos anos 60, ou assistiu às suas aulas na Faculdade de Letras.
Sendo um poeta complexo, com uma música muita própria, por vezes pousava na grande simplicidade e dava-nos pequenas pérolas como esta.
VITORINO NEMÉSIO (1901-1978)
O sol fechou o dia
Sem mão nem chave;
A pouca luz que havia
Deu-a para uma ave.
Então a ave selou
Com seu sono seu ninho,
E a terra toda amou
Na casa do passarinho.
Um ovo é como uma chave,
Mas só abre a vida às penas.
Apetece ser ave,
Ter as mágoas pequenas.
Sendo um poeta complexo, com uma música muita própria, por vezes pousava na grande simplicidade e dava-nos pequenas pérolas como esta.
VITORINO NEMÉSIO (1901-1978)
O sol fechou o dia
Sem mão nem chave;
A pouca luz que havia
Deu-a para uma ave.
Então a ave selou
Com seu sono seu ninho,
E a terra toda amou
Na casa do passarinho.
Um ovo é como uma chave,
Mas só abre a vida às penas.
Apetece ser ave,
Ter as mágoas pequenas.
domingo, 16 de novembro de 2014
ENCANTA-ME
O Abel Neves é um amigo, companheiro de ofício(s), dramaturgo, romancista e poeta. Segundo diz a música da poesia está presente em tudo o que escreve.
Este poema diz exactamente o que eu gostaria de dizer tantas vezes a algumas, não sei se muitas, pessoas.
ABEL NEVES (1956)
Faz o favor encanta-me
olha como faz Marte aos engenheiros
e está a tantos milhões de distância
Não te peço órbitas ao largo nem que venhas
mapear a casa um perfume que seja teu
só isso
e encanta-me
Este poema diz exactamente o que eu gostaria de dizer tantas vezes a algumas, não sei se muitas, pessoas.
ABEL NEVES (1956)
Faz o favor encanta-me
olha como faz Marte aos engenheiros
e está a tantos milhões de distância
Não te peço órbitas ao largo nem que venhas
mapear a casa um perfume que seja teu
só isso
e encanta-me
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
AMOR BIG AMOR
FERNANDO ASSIS PACHECO (1937-1995)
Amor amor big amor
eu dizia shazam e tu não me ligavas
pus Mandrake a seguir-te hábil nos truques
e tu não me ligavas
em qualquer planeta verde e avançadíssimo
tu não me ligavas
estendi o meu braço Homem de Borracha até S. Martinho do Bispo
e tu não me ligavas ponta nenhuma
tu querias era casar na Sé Nova
branquingénua abusar do meu livre alvedrio
fiz-te pois um manguito do tamanho dum choupo
e cá estou pai de filhos um bocado estragado
mas não por tua causa que já não existes
ó sombra de sombra à esquina da farmácia
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
NÃO EMPURREM, IRMÃOS!
Um dos mais irónicos e divertidos poemas do Zé Gomes Ferreira.
LÉCTRICO
XLII
E se eu de súbito gritasse
nesta voz de lágrimas sem face!:
Eh! companheiros da plataforma
presos ao apagar do mesmo pavio!
Porque não nos amamos uns aos outros
e damos as mãos
- sim as nossas mãos
onde apodrecem aranhas de bafio?
Eh! companheiros da plataforma!
(Não empurrem Irmãos.)
sábado, 8 de novembro de 2014
VAGAS E LUMES
O livro saiu na semana passada. E é para ler e chorar por mais.
O meu muito amigo e companheiro de nuvens e sonhos, Mia Couto, feiticeiro das palavras, mostra-se cada vez mais poeta, apesar de não deixar de ser um maravilhoso contador de histórias.
Falávamos há uns dias. Perante este mundo estranho que não sabemos para onde vai e onde muitos dos nossos sonhos de humanidade parecem demasiado adiados, afogados no "tem que ser" das economias, o que nos resta a nós se não SER, apenas SER, continuar a SER, com o mesmo olhar em fogo e água e as mãos a moldar o barro das palavras para as oferecer a quem delas mais precisa?
ERRATA
Quem é mortal, mente.
Mentirosos,
ainda mais,
os tais
imortais.
Sem culpa uns e outros.
O verbo morrer
é que é sujeito falso
e de duvidosa acção.
Mais verdadeiro seria
se não fosse verbo.
Ou se conjugasse apenas
em forma passiva: ser morrido.
Como eu,
mais que as vezes que nasci,
fui morrido por ti.
E, assim, findo
num engano de rio:
simulando que morre
mas sendo água eterna.
O meu muito amigo e companheiro de nuvens e sonhos, Mia Couto, feiticeiro das palavras, mostra-se cada vez mais poeta, apesar de não deixar de ser um maravilhoso contador de histórias.
Falávamos há uns dias. Perante este mundo estranho que não sabemos para onde vai e onde muitos dos nossos sonhos de humanidade parecem demasiado adiados, afogados no "tem que ser" das economias, o que nos resta a nós se não SER, apenas SER, continuar a SER, com o mesmo olhar em fogo e água e as mãos a moldar o barro das palavras para as oferecer a quem delas mais precisa?
ERRATA
Quem é mortal, mente.
Mentirosos,
ainda mais,
os tais
imortais.
Sem culpa uns e outros.
O verbo morrer
é que é sujeito falso
e de duvidosa acção.
Mais verdadeiro seria
se não fosse verbo.
Ou se conjugasse apenas
em forma passiva: ser morrido.
Como eu,
mais que as vezes que nasci,
fui morrido por ti.
E, assim, findo
num engano de rio:
simulando que morre
mas sendo água eterna.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
TEJO
Passei à beira Tejo. Há muito que não nos encontrávamos. Ficámos à conversa. Pouco tempo que esta vida que levamos não nos deixa parar muito.
Mas logo me veio à cabeça o O'Neill. O primeiro poeta das minhas leituras de adolescente. E que me ficou para sempre. Cheguei a saber a obra dele quase toda de cor. Da cuore. Do coração.
O Tejo Corre no Tejo
Tu que passas por mim tão indiferente,
no teu correr vazio de sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
Por isso, à tua beira se demora
aquele a saudade ainda trespassa,
repetindo a lição, que não decora,
de ser, aqui e agora,
só um homem a olhar para o que passa.
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
Um voo desferido é uma gaivota,
não é um voo da imaginação;
gritos não são agoiros, são a lota…
Vá, não faças batota,
deixa ficar as coisas onde estão…
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
Tejo desta canção, que o teu correr
não seja o meu pretexto de saudade.
Saudade tenho, sim, mas de perder,
sem as poder deter,
as águas vivas da realidade!
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
sexta-feira, 31 de outubro de 2014
CANTIGA DE MÃE
A obra da Alice está cheia de pequenas e grandes coisas deliciosas Este divertido poeminha é uma delas. Adoro dizê-lo nas escolas. As palavras e a poesia servem também para brincar. E, quando são bem entretecidas, como é o caso, tornam-se numa festa
CANTIGA DE MÃE
Olha as horas!
Sai da cama!
Não demores
a acordar!
Lava os dentes
muito bem.
- Mas… ó mãe!…
Não inventes
mais desculpas
p’ra atrasar!
Passa o pente
na cabeça!
Bebe o leite
mais depressa!
E não te esqueças
também..
- Mas… ó mãe!…
…de levar
a papelada
assinada
que a professora
mandou.
Vai lá buscar
a mochila
e vê, se por esta vez,
estão prontos
os TPC!
E fecha bem…
- Mas… ó mãe!…
A torneira
da banheira!
Olha o pingo…
- Mas ó mãe!...
Mas ó mãe!...
Hoje é domingo!
terça-feira, 28 de outubro de 2014
PINGA O PINGO
PINGA O PINGO
E cá vou andando eu a brincar com a música das palavras.
Pinga o pingo da torneira
Pinga pinga
Pinga o pingo
Que amanhã já é domingo
E depois segunda feira
Pinga o pingo da torneira
na banheira
terça feira
quarta feira
Pinga de toda a maneira
quinta feira
sexta feira
Falta pouco p’ra domingo
Pinga o pingo
Pinga pinga
Pingo o pingo da torneira.
sábado, 25 de outubro de 2014
CANTILENA
Os menos jovens lembrar-se-ão deste poema cantado pelo Xico Fanhais.
Talvez nem todos saibam que o poema foi escrito por Sebastião da Gama, professor e poeta de rara sensibilidade e delicadeza, falecido demasiado jovem.
CANTILENA
Cortaram as asas
ao rouxinol.
Rouxinol sem asas
não pode voar.
Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.
Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol!,
ta queira roubar.
Rouxinol sem noite
não pode viver.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
PORTUGAL
Num tempo de feroz ditadura da economia, dos mercados, dos bancos e de tudo o mais que nos encharca pesarosamente o quotidiano, é bom relembrar aos nossos filhos de onde viemos e para onde improvavelmente vamos.
PORTUGAL
O teu destino é nunca haver chegada
O teu destino é outra Índia e outro mar
E a nova nau lusíada apontada
A um país
que só há no verbo achar.
domingo, 19 de outubro de 2014
UM BURRINHO MEU AMIGO
Escrever para crianças implica deixar sair cá para fora a criança que nunca deixou de nos habitar. Quem não trouxer consigo esse espanto da vida, essa alegria, essa vontade de tornar as palavras numa festa, como o Vírgílio Alberto Vieira, é melhor escolher outro caminho.
HISTÓRIA DE UM CHAPÉU
Tinha um chapéu tirolês
Feito com palha de trigo
Por distracção outra vez
Comeu-o com avidez
Um burrinho meu amigo
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
O SENHOR MAR
A poesia da Matilde Rosa Araújo para crianças era de uma raríssima e muito delicada singeleza. Há muita gent que tnta escrever para crianças usando muitos "inhos", muitos "carinhos", muitos "passarinhos", mas poucos são os que conseguem essa qualidade das palavras quase cristalinas que saÍam da pena da Matilde.
HISTÓRIA DO SENHOR DO MAR
Deixa contar…
Era uma vez
O Senhor do Mar
Com muita onda…
Com muita onda…
E depois?
E depois…
Ondinha vai…
Ondinha vem…
Ondinha vai…
Ondinha vem…
E depois…
A menina adormeceu
Nos braços da sua mãe…
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
AS MÃOS DA MINHA MÃE
O meu amigo Hugo Santos é um poeta com um trabalho comovente mas pouco divulgado. Publicou há tempo este livrinho. Poesia para menino com uma crta toada alentejana em fundo.
AS MÃOS DA MINHA MÃE
Pelas mãos de minha Mãe passam todos os rios da casa.
É aí que os pássaros vêm beber.
Voam à volta da sua cabeça, aninham-se no seu colo
e cantam.
- Vem – diz minha Mãe.
E eu sinto que os rios começam a passar
das suas para as minhas mãos
e aí começam a matar a sede todos os pássaros
da terra.
sábado, 11 de outubro de 2014
RIMA BUZINA
Um dia, quando a Matilde Rosa Araújo, avançada na idade, andava já de bengala, o António Torrado disse-lhe referindo-se aos escritores de literatura infanto-juvenil "A Matilde é a nossa decana!"
E a Matilde, com o seu sorriso de menina marota, respondeu-lhe "De cana não, filho. De bengala!"
Não há dúvida de que um dos elementos fundamentais da escrita para crianças é o prazer em brincar com palavras.
E o António, que é agora o nosso decano, mas sem bengala, é daqueles que sabem brincar como poucos com palavras.
ANÚNCIO – II
Troco uma dor no peito
por uma dor no braço.
Negócio feito,
disse o braço ao peito.
Mas como era uma dor de respeito
o braço pôs um anúncio a dizer:
TROCO A DOR NO BRAÇO
POR OUTRA QUALQUER
INCLUSIVAMENTE DE BARRIGA.
Mas ninguém foi na cantiga.
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
OS ANOS QUE FAZEMOS TAMBÉM NOS FAZEM
O Álvaro Magalhães está entre os que melhor escrevem para crianças jovens, entre aqueles que fazem literatura, mesmo literatura, para os mais jovens.
ANIVERSÁRIOS
7.
Os anos que fazemos
também nos fazem a nós.
Os anos que fizemos nos fizeram.
Os anos que faremos nos farão.
É de anos que somos feitos,
de breve e misterioso tempo.
Em nós estão os anos que já fomos .
Esses anos, que fizemos, somos nós,
do cimo da cabeça à ponta dos pés.
Quanto tempo somos?
Quantos anos és?
De que é feito o tempo que nos faz?
Quanto tempo há?
Para onde vai o tempo que já foi?
Onde está o tempo que virá?
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
DA CIÊNCIA DE VOAR
Eduardo White, poeta moçambicano, embora com várias obras publicadas em Portugal, é daqueles poetas só referidos pelos "iniciados. Quer dizer, pelos que andam sempre à procura de vozes verdadeiramente comunicantes. Esta era uma delas Foi-se embora cedo de mais há cerca de mês meio.
Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.
Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.
Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro.
sábado, 4 de outubro de 2014
O CAMARADA BURRO
Este livro, aparecido logo a seguir ao fim da guerra independência não mencionava autor Dizia-se que era escrito por um anónimo guerrilheiro da Frelimo.
O autor era de facto António Quadros, português e moçambicano, poeta de vários heterónimos e pintor.
O livrinho é uma pérola que bem merecia sr reeditada.
MUTIMATI BARBABÉ JOÃO
O BURRO
Vejam o burro, Camaradas
Esta zebra pequena vestida de lama bonita fofa
Tem quatro pernas de andar aos saltinhos
Duas orelhas ouvidoras de ouvir tudo bem
Dois olhos espertos cheios até às lágrimas
[de paciência
O nariz do focinho muito fresco e macio.
O burro é burro, Camaradas?
Quem diz que é burro e despreza este companheiro?
Quem quiser ofender-me não me chame de burro
Quem quiser ofender-me não seja tão amável!
Quem quiser ofender-me inventa outra palavra
Porque chamar-me burro lembra-me burro mesmo
E não posso magoar-me com simpatia.
Não estou a defender o amigo útil somente
Não estou a pensar bem deste que faz o meu esforço
[e puxa
Não penso que ele me ouve tudo e puxa mais forte
[assim.
Há coisas deste companheiro para pensar melhor
[e espalhar.
Falo agora somente só de simpatia.
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