quinta-feira, 31 de março de 2016

VEM À QUINTA-FEIRA



Filipa Leal, poeta de cuja poesia gosto muito, acaba de publicar um novo livro. Vale a pena lê-lo. É preciso lê-lo. As suas palavras entretecem mantinhas de reflão a partir de momentos do quotidiano de uma forma tão delicada que até parece fácil escrever assim.

Mas, quando mergulhamos na sua escrita percebemos com encanto como é denso e elaborado o seu ofício de palavras.

Bem haja, minha amiga.


VEM À QUINTA -FEIRA


Vem à Quinta-feira.

É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.

Vem à Quinta-feira.

A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.

Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.

Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.

Vem à Quinta-feira.

Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.

Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.

segunda-feira, 28 de março de 2016

JOÃO DAMASCENO

Da poesia de João Damasceno (1955-2010) conhecia um poema apenas, publicado na antologia "Sião". Agora chegou-me pela mão do meu amigo António Cravo, o livro "Corpo Cru".

A sua poesia é uma pedrada que nos atinge com força inesperada. Uma voz notável e completamente ignorada e que aqui vai aparecer com frequência, por certo.




Em terra de cegos quem tem um olho é rei;
quem tem os dois é frequentemente abatido


----


Afirmávamos o delírio
dissemos palavras nuas,
provocámos a crise nas onsciências assustadas

Éramos os descobridorea das auroras negras
que transportam no seie e enlouquecem os espíritos

Desdenhámos da natureza,
Perguntámos-lhe os limites

Introduzimos as dúvidas que geram crimes,
explorámos a angústia

Depois era frio:
a cabeça recolhida entre os joelhos, fitávamos a costura das calças

sexta-feira, 25 de março de 2016

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES

Conhecia muito mal a poesia de Daniel Maia-pinto Rodrigues e a ele não o conhecia de todo.

Sabia-o frequentador das muitas tertúlias de poesia do Porto (entre as quais a famosa do café Pinguim.

Conhecemo-nos na Poesia à Mesa em S. João da Madeira. E foi amizade à primeira vista. Vou desatar a conhecer melhor a sua poesia. E darei aqui nota disso.



SINGULAR TEMPO PLURAL

Em Outubro passado
saí à noite com a cunhada de um amigo
o que me pareceu sexualmente correcto.

Tratava-se o espécime de alguém bem alinhavado
o que também me pareceu sexualmente correcto.

Levei-a a jantar a um bonito restaurante
trocámos umas ideias
trocámos uns olhares
engraçámos com os pontos em comum
e tudo estava a correr bem.
Falava eu das castas e tradições
do vinho que bebíamos
quando, sentindo-lhe o bouquet
ao dar um gole em grã seigneur
o estafermo do líquido
me entrou para os pulmões, circunstância infeliz
que provocou de imediato
imponente e borrifada engasgadela
mesmo ali à frente da carinha dela
o que francamente me pareceu
sexualmente incorrecto.

Mais tarde, quando já tinha
a algum custo recuperado o élan
fui com ela dar uma volta pela linha costeira.
Durante o passeio,
disse-me que estava a gostar muito
de ouvir os Roxette
o que me pareceu sexualmente correcto.
Depois abordou a política.
explicou-me que já não era
mas que tinha sido daquele partido
que agora, por sinal, está bastante partido
no mau sentido do termo.

Foi logo a seguir que me falou do mar.
Disse-me que o mar, poucos quilómetros adiante
era lindo!
Eu estava já a afiambrar as ideias
e não tardava muito ia entrar naquela fase
em que nos armamos em carapau.
Mas naqueles poucos quilómetros
que faltavam para o sítio
onde o mar é lindo
o carro ficou sem bateria.
Ainda esgrimi, atrapalhado
um incómodo diálogo com o démarreur
mas o carro, pois sim, já dali não saiu
o que, convenhamos
foi de todo sexualmente incorrecto.

Passou-se uma semana, um mês
sucederam-se os outubros
e, talvez pelo que se passou naquela noite
mas creio que não, as nossas vidas
levaram rumos diferentes.

Através do tempo
quando levo alguém a ver
o sítio onde o mar é lindo
fico com a sensação
de que é sempre um pouco depois.

domingo, 20 de março de 2016

ANGÉLICA FREITAS


E aqui fica uma poeta brasileira invulgar, publicada em Portugal pela editora douda correria do Nuno Moura.

~

querida angélica


querida angélica não pude ir fiquei presa
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
que o zelador se desse conta já eram dez e meia

querida angélica não pude ir tive um pequeno
acidente doméstico meu cabelo se enganchou dentro
da lavadora na verdade está preso até agora estou
ditando este e-mail para minha vizinha

querida angélica não pude ir meu cachorro
morreu e depois ressuscitou e subiu aos céus
passei a tarde envolvida com os bombeiros
e as escadas magírus

querida angélica não pude ir perdi meu cartão
do banco num caixa automático fui reclamar
para o guarda que na verdade era assaltante
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia

querida angélica não pude ir meu chefe me ligou
na última hora disse que ia para o havaí
de motocicleta e eu tive que ir para o trabalho
de biquíni portanto me resfriei

querida angélica não pude ir estou num
cybercafé às margens do orinoco fui sequestrada
por um grupo terrorista por favor deposite
dez mil dólares na conta 11308-0 do citibank
agência valparaíso obrigada pago quando voltar

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

YAO FENG

Ainda outro encontro de Cabo Verde. Trata-se de um poeta chinês e professor da Universidade de Macau. Um homem encantador, com grande humor e uma poesia de excepcional qualidade.



Amsterdã


Quando cheguei de carro a Amsterdã
já era meia-noite.
A reputada cidade do sexo
tornava ambíguas as luzes da rua.
Até o rosto do dono da pensão
insinuava prazer.
Mas nada me aconteceu.
O amanhecer refletia-se no rio
e o céu, muito nublado. No Museu Van Gogh,
os girassóis quebravam os raios de sol
para ficar irmanados num vaso.
Na noite distorcida, a terra de trigo,
grávida de luar,
ondulava enlouquecida.
Do auto-retrato do pintor sombrio
retirei uma orelha, de verdade,
e voltei para a rua: todos estavam com
seus órgãos intactos e saudáveis.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

ANA PAULA TAVARES


Mais um encontro em Cabo Verde. Um encontro caloroso com uma poeta angolana de grande qualidade.



ANA PAULA TAVARES (1952)

O cercado

De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado




A mãe e a irmã


A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

LUÍS CARLOS PATRAQUIM


Regresso ao Blog com a necessidade crescente de falar dos meus amigos poetas.

Estive em Cabo Verde, no VI Encontro de Escritores da Lusofonia organizado pela UCCLA. E trago notícias, notícias sérias, notícias importantes, notícias poemas.

E começo pelo meu m,uito querido amigo LUÍS CARLOS PATRAQUIM, poeta Moçambicano a viver de momento na "Ilha" de Stº António dos Cavaleiros.


LUÍS CARLOS PATRAQUIM (1953)


MUHÍPITI


E onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como máos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. E onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
E onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
E onde me confunde de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. E onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA



Affonso Romano de Santa'Anna é um excelente poeta brasileiro e autor de literatura para a infância.

Vai estar no 2º ENCONTRO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DA LUSOFONIA, de 22 a 27 de Fevereiro na Fundação O Século, antiga Colónia Balnear de O Século em S. Pedro do Estoril.

CHEGANDO EM CASA


Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia:

- hoje 22 de agosto de 1994
meu marido perdeu, deste terraço:

mais um pôr de sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI


A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

domingo, 15 de novembro de 2015

JOÃO CABRAL DO NASCIMENTO (1897 - 1978)

Madeirense, poeta raro, ausente do barulho da fama, a sua obra é de um inexcedível prazer de leitura.

“… graças à arte requintada com que trabalha o verso, Cabral do Nascimento atinge em muitas das suas composições uma simplicidade, uma sageza, um desencanto, um doloroso fruir dos efémeros frutos da vida, características que lhe dão o direito a que o consideremos um dos mais altos poetas da sua geração.” João Gaspar Simões dixit.




REDONDILHA


Sobre os rios e ribeiros

Que por esses vales vão,

Pus um barco de papel.

Os desejos vogam nele,

Que as palavras essas não.




E quando as águas encontram

As suas irmãs do mar

E se misturam, aos beijos,

Vão para o fundo os desejos

As penas sobem ao ar.




Desejo, dor e saudade

São companheiros. Depois

Morre primeiro o primeiro,

Ainda ás vezes solteiro,

Ficam só os outros dois.



sábado, 31 de outubro de 2015

YVETTE CENTENO


Poeta elegante, serena, segura. Trabalha nos insterstícios da linguagem. Merece ser redescoberta.

O POETA ABORRECIDO


E de repente o vazio

o ennui

o aborrecimento

sem causa nem efeito

as horas não obedecem

ao ponteiro do relógio

e este,

falhado o seu destino,

entra em desgoverno

e mata-se

no fundo da gaveta



O homem sentado a ler

não sabe nada das horas

nem do relógio

e ainda menos da gaveta

e do grande desgoverno

se lhe falassem disso

diria que era treta

ele já se perdeu do tempo

do presente e do passado

o entretém são as letras

elas são o seu relógio

são as horas

e o ponteiro

são o último dos últimos

e para sempre

o primeiro


















domingo, 18 de outubro de 2015

ISABEL MEYRELLES


Artista plástica, ezcelente ceramista e poeta. Foi das poucas mulheres ligadas ao Movimento Surrealista Português. Estudou e viveu entra Paris e Lisboa.

A sua obra poética foi publicada há alguns anos pela editora Quasi.



Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
sonhar os meandros
mais secretos
do teu corpo
floresta e armadilha,
fonte e bramido

Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
entrelaçadas, adormecidas,
recriando o peito,
as espáduas, o ventre,
as coxas, o sexo,
amazônia interior

Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
por vezes um único dedo
desenha no ar
os olhos, a boca, o cabelo,
estrela negra
que só eu conheço
Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
sonhar esta travessia do espelho
de reflexos infindos
que é a minha recordação de ti.
Aliás, que outra coisa
podem elas fazer?

terça-feira, 13 de outubro de 2015

ANA HATHERLY


Foi-se embora há cerca de dois meses. E faz falta. Peloi seu espírito inovador. Experimental. Pelo seu trabalho plástico. Pela sua bela poesia.

Esta "BALADA DO PAÍS QUE DÓI" foi escrita nos anos 60. Podemos relê-lo como se tivesse sido escrito nestes últimos anos da chamada crise.



BALADA DO PAÍS QUE DÓI

O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
português vai

português sai
português dói

domingo, 4 de outubro de 2015

JOAQUIM PESSOA


Querido amigo e companheiro da poesia, da palavra partilhada, do poema na ponta da voz.


OS AMANTES COM CASA

Andavam pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Respiravam exaustos como se tivessem
nascido da terra
de dentro das sementeiras.
Beijavam-se magoados
até se magoarem mais.
Um no outro eram prisioneiros um do outro
e livres libertavam-se
para a vida e para o amor.
Vivendo a própria morte
voltavam a andar pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Então era a música, como se
cada corpo atravessasse o outro corpo
e recebesse dele nova presença, agora
serena e mais pobre mas avidamente rica
por essa pobreza.
A nudez corria-lhes pelas mãos
e chegava aonde tudo é branco e firme.
Aquele fogo de carne
era a carne do amor,
era o fogo do amor,
o fogo de arder amando-se e por toda a casa,
contra as paredes, no chão.
Se mais não pressentissem bastaria
aquela linguagem de falar tocando-se
como dormem as aves.
E os olhos gastos
por amor de olhar,
por olhar o amor.
E no chão
contra as paredes se amaram e
pela casa andavam como
se dentro das sementeiras respirassem.
Prisioneiros libertados, um
no outro eram livres
e para a vida e para o amor se beijaram
magoando-se mais, até ficarem magoados.
E uma presença rica,
agora nova e mais serena,
avidamente recebeu a música que atravessou de
um corpo a outro corpo
chegando às mãos
onde toda a nudez é branca e firme.
Com uma carne de fogo,
incarnando o amor,
incarnando o fogo,
contra o chão das paredes se amaram
pressentindo que
andando pela casa bastaria tocarem-se
para ficarem dormindo
como acordam as aves.

sábado, 19 de setembro de 2015

MANUEL ALBERTO VALENTE


O Manuel Alberto Valente é um editor reconhecidíssimo pela qualidade do trabalho que tem feito na sua vida profissional. Devo-lhe ter-me dado a conhecer uma enorme quantidade de escritores.

No entanto será menos conhecido como poeta que teve uma produção mais intensa antes do 25 de Abril. Várias vezes lhe falei da sua poesia e encontrava nele uma timidez como se preferisse deixar a poesia no longe dos anos onde morava.

Felizmente é agora publicada. E algumas pessoas mais jovens ou menos recoirdadas terão por certo agradáveis surpresas ao lê-lo.



LADAÍNHA PARA O TEU ADORMECER


um velho muito velho a sonhar com a Soraya
um padre muito padre a dizer que é ateu
um prédio quase novo que se espera que caia
uma homenagem póstuma a alguém que não morreu

uma canária virgem que abandonou o ninho
uma fonte com água quase a morrer de sede
a dez tostões esticadores p’ró colarinho
um ginasta atrevido que trabalha sem rede

uma pomada mágica do próximo oriente
um macaco sem rabo que foi de foguetão
um bébé sem cabelo a chorar por um pente
uma tia doente a arder no fogão

uma cautela em branco na roda de amanhã
um nariz muito sujo sem ter onde se assoe
um ramo de camélias a estrelar na sertã
e que deus nosso senhor vos abençoe

domingo, 13 de setembro de 2015

DANIEL FARIA

Poeta breve e fulgurante, Daniel Faria naceu emn 1971 e faleceu em 1999 quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.

Anunciando uma clara influênia de Eugénio de Andrade, Daniel Faria construiu uma voz própia que deixava prever um longo e magnífico caminho na poesia que infelizmente ficou apenas pela promessa.


AMO-TE NESTA IDEIA NOCTURNA DA LUZ NAS MÃOS

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

MIGUEL-MANSO


Longe do do que podemos dizer que é o millieu literário, Miguel-Manso ocupa um lugar destacado na poesia contemporânea portuguesa. A sua poesia tem uma ressonância com alguma dimensão telúrica, uma verdade própria que se constrói como uma aventura por vezes emocionante entre a palavra e a vida.

NEM TANTA COISA DEPENDE

~
preferes o canto, o lugar oculto
a folhagem, a sombra, o quarto, este
saco de trigo: ouro de um texto
sobre a velha escrivaninha do real
lá fora o clarão do arvoredo
atalhos para a tingidura da paisagem
cá dentro menos caminho, outro
panorama: a presença tão-só
desabitada de uma pessoa, mistério sem
atributo ou função
sempre a desfeita de um coração
o cultivo intensivo das figuras
e sobram tristeza e dias ao corpo que escreve
no calabouço de uma manhã muito larga
reluzente de gotas de mel
enquanto os gatos lambem o sábado
e sentado, sapo de ouro, permites-te pôr no mundo
(mas porquê) outro poema


[in Ensinar o Caminho ao Diabo, edição do autor, 2012]

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

MATILDE CAMPILHO

A Editora Tinta da China é das poucas editoras que mantém uma coçlecção de poesia com uma distribuição que permite encontrar os seus volumes nas livrarias em geral.

Boa escolha gráfica (como é timbre da editora), direcção do Pedro Mexia, autores novos e velhos, portugueses e estrangeiros... Poesia. E basta.

Parabéns.

A Matilde Campilho é das muito novos e já com grande sucesso suponho que sobretudo no Brasil. Diz-se dela que é uma luso-carioca, jornalista, poeta nómada.

A sua escrita é nova, festiva, intensa. Mistura inglês, português de cá, português de lá, reinventa alguma gramática e construção narrativa.

Constrói-se sobre alguma consistência, muita festa, mais promessa ainda para o futuro. Estamos à espera da continuação.



PRÍNCIPE NO ROSEIRAL


Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

JORGE GOMES MIRANDA


JORGE GOMES MIRANBDA nasceu no Porto em 1965 e tem uma vasta obra espalhada em inúmeras editoras, com livros difíceis de encontrar. É um poeta com uma atenção ao quotidiano que me agrada e emociona frequentemente.


MOLA DE ROUPA

Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.
Um prédio com dez andares
e ele tinha logo que viver no último,
tendo como horizonte o mar
de terraços e antenas parabólicas.

Quando, chegado com a roupa
da máquina de lavar,
pega em mim,
de suas mãos eu deslizo para o chão.
Apressado, em vez de me apanhar
imediatamente, escolhe outra;
no final, atira-me para o cesto
de verga.

Não é que seja particularmente ardilosa,
mas verdade seja dita, preferia ser
mola de rés-do-chão,
dessas que faça sol ou chuva
sempre prendem a roupa numa corda
estendida no pátio.
O destino quis-me feita de plástico,
com um coração inclinado à melancolia.
Tenho, no entanto, como divisa
antes quebrar que torcer.

Sonho com o dia em que nas mãos da criança
serei um comboio.


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

CARLOS ALBERTO MACHADO


Carlos Alberto Machado , (1954) poeta, dramaturgo, romancista, ensaista, trabalha nas áreas do teatro, animação e gestão cultural.



DESCULPA DESCULPA



(para a Mulher Azul)



Desculpa desculpa
nem sei o teu nome
só olhei para ti deitada
na via do infante
quinze de agosto
mil novecentos e noventa e nove
olhei várias vezes sem perceber
olhei-te pois e estavas azul
sobretudo no rosto e nos pés
cuspida na valeta
(ó mãe os carros cospem?)
noutras circunstâncias diria olá!
agora assim azul e a pulsação quase nada
qual era a tua cor antes do azul?
se ainda receberes a tempo este telegrama
responde-me por favor
o apartado está no verso.