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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Ó ÁGUAS DAS NUVENS

Natural do Alvito, Raúl de Carvalho, construiu nos seus anos de poeta uma obra delicada e intensa. É inesquecível para quem o lê o longo poema "SERENIDADE ÉS MINHA" que Mário Viegas gravou com a arte notável que era a sua. É um daqueles poetas que é preciso lembrar quando pululam por aí alguns tantos poetas que nunca serão lembrados.



Na rua molhada,
No vão de uma escada,
Envolto na sombra
Silente da noite,
Um menino dorme
Deitado no azul
Da noite estrelada,
Um menino sonha
Com fadas e luas
E um sol pequenino
Brincando e brilhando
No céu de menino…

Ó águas das nuvens
Descei devagar…
Se o menino acorda
Tem medo da chuva
E fica a chorar…

terça-feira, 27 de julho de 2010

SERENIDADE ÉS MINHA



A propóito do Alvito e do poeta Raúl de Carvalho, vale a pena lembrar um dos mais belkos (e longos) poemas do nosso século XX de que aqui transcrevo uma parte.


RAUL DE CARVALHO (1920-1984)


SERENIDADE ÉS MINHA


Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura
dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os monstros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita
os cabelos.

Vem, serenidade,
com o país veloz e virginal das ondas,
com o martírio leve dos amantes sem Deus,
com o cheiro sensual das pernas no cinema,
com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com o macio ventre das mulheres violadas,
com os filhos que os pais amaldiçoam,
com as lanternas postas à beira dos abismos,
e os segredos e os ninhos e o feno
e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com Deus molhando os olhos
e as esperanças dos pobres.

(..................................................................)

Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.

E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caos e carne nos espectros,
e ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na chaminé do sangue.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
Um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retrácteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento,
com tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente,
Serenidade, és minha.