sábado, 30 de agosto de 2014

QUANDO EU FOR PEQUENO

O José Jorge Letria é um querido amigo e companheiro de há muitos anos, antes e depois do 25 de Abril.

Foi vasta a sua actividade cívica, quer na resistência à ditadura salazarista, quer na construção desta democracia agora a tremeluzir demais para quem gosta da luz clara e da palavra limpa.

O Zé é um poeta amado por uns e mal querido por algumas das senhoras patroas que mandam nas literatices.

A sua obra é vasta e diversa, brilham nela momentos de poesia de rara qualidade.
Alguns dos seus livros são imprescindiveis, nomeadamente "O LIVRO BRANCO DA MELANCOLIA", um dos meus favoritos, de onde saiu este "QUANDO EU FOR PEQUENO".




QUANDO EU FOR PEQUENO

Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a ceteza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena
com um lenço branco com as iniciais bordadas
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A FLOR

Por vezes penso que a dimensão imensa de Fernando Pessoa deixou na sombra poetas seus contemporâneos que mereciam outra atenção.

É o caso de Almada Negreiros, alma intensa do nosso modernismo. Grande pintor, desenhador e poeta.




A FLOR


Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ESTRELA DA MANHÃ

Manuel Bandeira, outro dos grandes da poesia em português.




ESTRELA DA MANHÃ



Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

QUADRILHA

Carlos Drumond de Andrade é um dos maiores poetas da língua portuguesa do séc. XX.

É preciso encontrá-lo. reencontrá-lo, usá-lo e abusá-lo.

Chico Buarque de Holanda inspirou-se várias vezes em Drumond. E a partir deste poema fez uma canção deliciosa gravada num disco ao vivo com maria Bethânia.



Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

MEU POVO MEU POEMA



Ferreira Gullar é dos poetas brasileiros que leio com maior entusiasmo. E acho que é preciso lê-lo a ele e a outros.
Não podemos andar tão longe do outro lado o mar.

Ainda por cima o Gullar faz umas colagens deliciosas que até foram publicadas num livro editado pela Caminho.


FERREIRA GULLAR (1930)

Meu povo, meu poema


Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

sábado, 16 de agosto de 2014

MARGARIDA FONSECA SANTOS

Quem anda pelas escolas deste país e sabe o esforço que algumas pessoas fazem para a promoção do livro e da leitura conhece o trabalho fantástico da Margarida Fonseca Santos.

Há tempos descobri um livro dela absolutamente delicioso. Nunca o tinha visto em nenhuma livraria.

Quem tem filhos ou netos pequenos procurem este livro e leiam-no com eles. vai ser uma festa.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Ó ÁGUAS DAS NUVENS

Natural do Alvito, Raúl de Carvalho, construiu nos seus anos de poeta uma obra delicada e intensa. É inesquecível para quem o lê o longo poema "SERENIDADE ÉS MINHA" que Mário Viegas gravou com a arte notável que era a sua. É um daqueles poetas que é preciso lembrar quando pululam por aí alguns tantos poetas que nunca serão lembrados.



Na rua molhada,
No vão de uma escada,
Envolto na sombra
Silente da noite,
Um menino dorme
Deitado no azul
Da noite estrelada,
Um menino sonha
Com fadas e luas
E um sol pequenino
Brincando e brilhando
No céu de menino…

Ó águas das nuvens
Descei devagar…
Se o menino acorda
Tem medo da chuva
E fica a chorar…

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

POEMAS DO PESCADOR


Um dos mais belos livros de poesia das últimas décadas em Portugal é "SENHORA DAS TEMPESTADES" de Manuel Alegre.

Nesse livro, além do longo e extraordinário poema que lhe dá o título, conta-se também um conjunto de poemas sob o tìtulo de "Poemas do Pescador". Aqui fica um deles. E do autor deste poema poderíamos porventura dizer como diz o Mia Couto de si próprio: "Ateu, não praticante"


QUARTO POEMA DO PESCADOR



Sei agora que Deus rola nas ondas
vem na última onda ei-lo na espuma
é reflexo brilho incandescência.
Se vou à pesca é para o procurar
se lanço a linha é para ver se o pesco
quando pesco um robalo eu pesco Deus
e é com ele que falo em frente ao mar
ele é seixo a alga o vento leste
a nuvem que lentamente cobre a lua
ele é a minha dispersão e a minha comunhão
o fragmento de estrela que se vê ainda
a tainha que salta
ele é o grão de areia e a imensidão da noite
o finito e o infinito
vai na corrente corre-me no sangue
não sei que nome dar-lhe
digo Deus
ele é o laço que me prende e me desprende
o que palpita em mim e o que em mim morre
vem na sétima onda e bate no meu pulso

ele é o aqui o agora o nunca mais
a morte que está dentro
rola na onda
bate na sétima costela do meu corpo
chamo-lhe Deus porque ele é o tudo e é o nada
eternidade que não dura sequer o eu dizê-la
ei-lo na espuma na lua no reflexo
de repente um esticão a cana curva-se
é talvez um robalo de seis quilos
isto é a pesca
o meu falar com Deus ou com ninguém
sozinho frente ao mar.

Ele é o vento a noite a solidão
O robalo que luta contra a morte
E é a minha ligação magnética com Deus
Esse umbigo do mundo
Que rola sobre as ondas e cai do firmamento
Com sua espuma e sua luz e sua noite
Chamo-lhe Deus porque não sei como chamar
Ao meu ser e não ser
De noite junto ao mar
Quando regulo a amostra e sua fluorescência
Pescando robalos
Ou talvez Deus
E sua ausência.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O MAR EM VOLTA


Poeta discreto, o João Rui de Sousa. E exigente, rigoroso no traçado dos seus versos. Escritor com muitos anos de ofício e leitor generoso e atento dos outros poetas.



VIA ABERTA OU O MAR EM VOLTA

Ter o destino em aberto
para o impulso do salto.
Ter sempre o olhar mais perto
daquilo que está mais alto.

Ter a seiva e ter o fito
Das palavras em semente.
Ter o sonho sempre rente
aos ombros do infinito.

Ter das coisas todo o lume
Desde o fim ao seu começo.
Ter as mãos que se entreabrem
à ilha que seja berço,

ao espaço que seja infindo,
à praia que seja o mundo
de um amor que não tem preço
nem superfície nem fundo.

E seguir no desalinho
dos navios fora de rumo
por mares sem endereço.
João Rui de Sousa


VIA ABERTA OU O MAR EM VOLTA

Ter o destino em aberto
para o impulso do salto.
Ter sempre o olhar mais perto
daquilo que está mais alto.

Ter a seiva e ter o fito
Das palavras em semente.
Ter o sonho sempre rente
aos ombros do infinito.

Ter das coisas todo o lume
Desde o fim ao seu começo.
Ter as mãos que se entreabrem
à ilha que seja berço,

ao espaço que seja infindo,
à praia que seja o mundo
de um amor que não tem preço
nem superfície nem fundo.

E seguir no desalinho
dos navios fora de rumo
por mares sem endereço.

domingo, 3 de agosto de 2014

AVENTURA MARÍTIMA


A moda na poesia é terrível. Cria pquenas divindades de pés de barro nascidas anteontem e deixa na sombra poetas com anos de consistência, dimensão e trabalho. É o caso da minha amiga Rosa Alice Branco, poeta do Porto que vale muito a pena ser lida.


Aventura Marítima

É à noite que as traineiras descem o rio,
o ruído do motor não abafa o marulhar da água,
parecem pirilampos com nome de mulher:
Rosinha, Salette, Princesa dos Mares,
deslizam por entre esgotos, sacos
e garrafas de plástico, a aventura marítima
está povoada com novos artefactos. É preciso
sacudir o petróleo do peixe, escová-lo, desligar
o interruptor para que o mercúrio se torne invisível
e as peixeiras mostrem as guelras do saudável
cherne de boa linhagem. Já nada é o que era
e eu creio que nunca foi. Que romântico é olhar o rio,
a procissão da traineiras, Cristo crucificado e a mãe
chorando. É sexta-feira de paixão, fim-de-semana,
a foz enche-se de carros, pessoas acotoveladas
nos bares da praia. Ao fim da noite virá o palio
e um halo de santidade descerá aos peixes,
à sardinha, à pescada, ao robalo,
que rezem por nós, agora que estão iluminados a petróleo
e que o mercúrio brilha no coração dos eleitos.

Rosa Alice Branco

domingo, 27 de julho de 2014

GILDA


Continuando à volta da língua que falamos e dos seus poetas, um dos grandes da literatura brasileira




MURILO MENDES (1901-1975)

GILDA

Não ponha o nome de Gilda
na sua filha, coitada,
Se tem filha pra nascer
Ou filha pra batisar.
Minha mãe se chama Gilda,
Não se casou com meu pai.
Sempre lhe sobra desgraça,
Não tem tempo de escolher.
Também eu me chamo Gilda,
E, pra dizer a verdade
Sou pouco mais infeliz.
Sou menos do que mulher,
Sou uma mulher qualquer.
Ando à-toa pelo mundo.
Sem força pra me matar.
Minha filha é também Gilda,
Pro costume não perder
É casada com o espelho
E amigada com o José.
Qualquer dia Gilda foge
Ou se mata em Paquetá
Com José ou sem José.
Já comprei lenço de renda
Pra chorar com mais apuro
E aos jornais telefonei.
Se Gilda enfim não morrer,
Se Gilda tiver uma filha
Não põe o nome de Gilda,
Na menina, que não deixo.
Quem ganha o nome de Gilda
Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
No corpo de uma mulher.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

FEITICEIRO DAS IMAGENS E DAS PALAVRAS


Grande feiticeiro das imagens e das palavras, o Malangatana era um muito querido amigo.

Nestes tempos em que é preciso defender a língua portuguesa dos muitos acordos e desacordos, são os poetas da lusofonia que anunciam e sempre anunciaram o caminho do futuro desta língua tão antiga em que todos amamos, rimos, gritamos e sonhamos.


MALANGATANA VALENTE NGENYA (1936-2011)


ÁFRICA GRITA AO LINDO HLONGO


Quem é que te fez negro
desde Cabo até aos Pirâmides?
Quem é que na noite escura gritou
um grito cujo eco fugiu pelo ar?
Quem é que rasgou a capulana
encarnada do templo negro?
Quem é que fez as lagoas de casas espectaculares?
Quem é que pariu o mulato sem pai?
Quem é que na rua à meia-noite
gritou sem grito?
Quem untou na cara do preto asfalto?
Quem é que na noite do feitiço
rasgou as portas da palhota do Xikwembu?
Quem é que partiu a cabeça de suruma?
Quem fumou o rapé sagrado do avô?
Quem untou de banha
a lata vazia
em que o feiticeiro guarda
os seus segredos?

terça-feira, 22 de julho de 2014

MARGARIDA VALE DE GATO



Outra bela poeta entre os surgidos neste século.
Margarida Vale de Gato, investigadora universitária, e (magnífica tradutora O seu livro "Mulher ao mar" vai na 4ª edição.


COM PAIXÃO E HIPOCONDRIA

Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes – entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía

domingo, 20 de julho de 2014

O CAMINHO MARÍTIMO PARA A ÍNDIA




A Catarina Nunes de Almeida é, quanto a mim, uma das mais interessantes poetas surgidas já neste século e acaba de publicar um pequeno livro comovente.

No início deste livrinho lê-se:

"Para o Miguel, que durante 9 meses carregou comigo um filho.
E durante outros tantos, este livro."

E aqui fica um poema

"então a mulher aceNdeu uma velinha sobre a palavra homem
era uma palavra homem sem carta de marear e sem corrigenda -
onde se lia homem devia ler-se homem.

o homem era o limite de cada oração
estava na fluência da mulher como uma vírgula.
sempre que a mulher percorria palavra homem
estava descoberto o caminho marítimo para a índia."


domingo, 6 de julho de 2014

JUAN MANUEL ROCA


Depois de alguns poemas meus, alguns poemas que me emocionaram de poetas lidos por aqui e por ali.

JUAN MANUEL ROCA

Poeta Colombiano



BREVE HISTÓRIA DE NINGUÉM

Diz o senhor Nabokov que a literaura não nasceu
quando uma criança de um vale do Neandertal chegou a
gritar: Um lobo! Um lobo!, e atrás dele , as quatro patas no
ar, um lobo cinzento brandia a sua língua estralejante.

Diz, melhor, que a literatura nasceu quando uma
criança de um vale do Neandertal chegou a gritar: Um
lobo! Um lobo!, e atrás dele não vinha ninguém.

Desde então, ninguém é um perasonagem eterno, um
fantasma nos vales do poema.


(In " OS CINCO ENTERROS DE PESSOA", tradução de Nuno Júdice)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O SENTIDO

O SENTIDO

(Sobre pinturas de Joaquim Rodrigo)

I

Um dia, de manhã, ao acordar,
tomamos conhecimento
de que nada faz sentido.

Riso ou neve,
nada faz sentido.

Olhamos em redor,
encontramos o quê?

Fragmentos submersos,
membranas calcificadas,
palavras ázimas,
incêndios brancos sem qualquer correspondência
com a música nascida desse imenso continente
que é e foi e será sempre a comoção.

Um dia, de manhã, ao acordar,
o mundo torna-se inesperadamente estreito
e o tempo dos assassinos
começa a instalar-se
com seu doce sorriso sedutor.

Tudo fica ao rés de um fogo que se extingue
e Deus, tenha o nome que tiver,
terra ou mar ou vento,
não é mais que uma peça encravada
no remoer desdentado
de algum mecanismo inútil.


II

Um dia, de manhã, ao acordar,
tomamos conhecimento
de que tudo faz sentido
se soubermos encontrar o ovo essencial,
a fonte, o nome da alegria.

Rejubilamos, então.
Voltamos ao calor da terra.
Beijamos a raiz do cedro
E partimos a arder através da noite.

Aprendemos o caminho antigo
na palma da mão dos ferreiros,
dos oleiros,
os que inventam pássaros de vidro
no esconso da solidão.

É o momento em que as cores da terra
nos vêm chamar
para nos instilar a chama
do arco do seu saber.

Vermelho e sangue,
preto e ocre
são as cores
e dela somos feitos.

E há um risco demarcando
o território do silêncio
e outro
anunciando a chuva.

Barro, lama, lume,
tudo quanto somos
vinha anunciado em cada grão.

E a estrela brota cinco vezes
por dentro do coração.

E basta ler o relâmpago
e soltar a palavra
e declinar o verbo de que nasce a cor.

(de "Marinheiros de outras luas", a publicar)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

AS AVESTRUZES BAILARINAS

AS AVESTRUZES BAILARINAS

(Sobre uma pintura de Paula Rego)


Perderam no ovo
a memória do voar.

As avestruzes.

Têm desejos aerodinâmicos.

Dormem numa febre de sentir
encostado ao peito
o mecânico ruído de turbinas
hélices
motores.

Têm sonhos que nunca confessarão
nem sequer á própria sombra.

Aspiram soluçando à forma das fuselagens.

Perderam no ovo a inclinação
à travessia das nuvens.

Vão dançar a noite inteira
procurando tristemente a memória
de uma estrela de um cometa
ou de uma asa.

(de "Marinheiros de outras luas", a publicar)

sábado, 21 de junho de 2014

PAI

PAI

(Sobre uma escultura de João Cutlieiro)


“Aos 16 anos uma pessoa ainda pensa que pode fugir ao pai.”

Salman Rushdie

Busco um pai ausente aqui,
na pedra,
na severa e segura presença
da pedra,
um pai de pedra,
um chão de onde partir.

Busco duas asas de granito
vigiando o descaminho
dos meus passos,
duas asas ou um pai
de pedra erecta e justa,
resistindo eternamente
ao trabalho da ferrugem.

Busco a profissão do guerreiro
grávido de fé e de furor.

Busco à beira-mar
um pai de pedra
onde possa descansar
a febre do olhar.

Busco um fio de prumo,
um pai definitivo
amável e bondoso
surgindo vertical
do puro espanto da terra.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

LABIRINTO

LABIRINTO

(Sobre uma gravura de Bartolomeu Cid dos Santos)

“Sabemos agora que não é necessário que os átomos tenham um objectivo.”

Umberto Eco, “A linha e o labirinto”


Vou fazer um labirinto
no outro lado da lua.

Com palavras ou pedras
ou nuvens ou fios de lã.

Tenho de fazer um labirinto
para lá da esquina do vento.

Um labirinto entre o céu e a terra
onde alguém tropece
no cheiro quente
das castanhas em Outubro.

É urgente construir um labirinto
em Outubro ou em Fevereiro.

Um labirinto onde a lua
em cada noite se tinja
de um vermelho escandaloso.

Tenho de inventar a geometria
sem fuga nem distância.

Tenho de fazer acontecer um labirinto.

E soltar o touro essencial.

E acender o olho do falcão.

E rasgar a carne até ouvir
na cor do sangue
a flauta de Mozart.

Tenho de inventar um labirinto,
o lugar onde venha, porventura,
a encontrar-me um dia com todos os que amo,
filhos ou amigos,
pássaros felizes sobre o mar.
´

domingo, 15 de junho de 2014

A CABEÇA DOS PINTORES

A CABEÇA DOS PINTORES

(Sobre pinturas de Cruzeiro Seixas)

“Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.”

André Breton e Paul Éluard




Abre a porta. Entra.
Ouve pela última vez
o aviso asséptico dos homens
sem espinhos nos olhos
nem rosas no coração.
Ouviste? Apesar de tudo vais entrar?
Estás tomado pelo vírus do sangue
e da loucura dos cavalos.
Já não há marcha atrás.
É aqui que começa o céu
e o inferno.

Anda ver.

Na cabeça dos pintores
voam aves amputadas
da brancura imaculada
dos seus sonhos verticais.
Aves doidas aves mansas
que deixam enferrujar
as garras com que rasgaram
a seda do firmamento.

Anda ver este mar que te anuncia
barcos de cal corroída
na cabeça dos pintores!

E não tremas! Não te enganes!
Tu abriste a porta dos mistérios.

Não podes voltar atrás.

Deixa aqui a tua pele e o que resta do tecido
de uma inocência maior.
Tu estás perdido para sempre.
Só te resta mergulhar.

Na cabeça dos pintores
crescem cidades nocturnas
como ausências preenchidas
por restos maravilhosos
da refeição dos chacais!
E em cada esquina descansam
ossaturas descarnadas
dos construtores de ruínas.
E as palavras ficam nuas
sem ter onde germinar.

Na cabeça dos pintores
um touro desembolado
a cuspir um sangue negro
avança no seu martírio
às cinco da tarde em ponto.
E os circos trazem bandejas
onde vêm oferecer
a morte da mágoa verde
ao vício das gargalhadas.
E as bocas pedindo amor
arrastam algas ao vento
à porta das catedrais
nos domingos de manhã.

Na cabeça dos pintores
os odores alaranjados
entregam-se intensamente
ao gozo das oliveiras.
E as mãos negras dos ceifeiros
sob um sol abrasador
semeiam bocas gretadas
nos campos rasos do Sul.
E a água que vem de Deus
acende solenemente
um fogo imenso no céu.

Na cabeça dos pintores
as esferas enlouquecem
dissolvidas lentamente
no suave despotismo
das areias dos desertos.
E ao vento voam crianças
e mantilhas sevilhanas.
E os beduínos caminham
no sentido inverso aos olhos
dispersos pelas lixeiras.

Na cabeça dos pintores
há cães que transpiram cores
e uma música calcária
vai pingando sobre os ossos.
E há navalhas competentes
desenhando cuidadosos
arquipélagos de sangue.
E uma planta tropical
devora virgens cantando.
E os fantasmas insepultos
vêm levar-nos pela mão
a uma sala de cinema
onde os anjos se apagaram.

Anda ver e ver e ver
como tudo pode arder
e nascer e renascer
na geografia de guelras
da cabeça dos pintores!


(De "Marinheiro de outras liuas", a publicar)