sábado, 4 de outubro de 2014
O CAMARADA BURRO
Este livro, aparecido logo a seguir ao fim da guerra independência não mencionava autor Dizia-se que era escrito por um anónimo guerrilheiro da Frelimo.
O autor era de facto António Quadros, português e moçambicano, poeta de vários heterónimos e pintor.
O livrinho é uma pérola que bem merecia sr reeditada.
MUTIMATI BARBABÉ JOÃO
O BURRO
Vejam o burro, Camaradas
Esta zebra pequena vestida de lama bonita fofa
Tem quatro pernas de andar aos saltinhos
Duas orelhas ouvidoras de ouvir tudo bem
Dois olhos espertos cheios até às lágrimas
[de paciência
O nariz do focinho muito fresco e macio.
O burro é burro, Camaradas?
Quem diz que é burro e despreza este companheiro?
Quem quiser ofender-me não me chame de burro
Quem quiser ofender-me não seja tão amável!
Quem quiser ofender-me inventa outra palavra
Porque chamar-me burro lembra-me burro mesmo
E não posso magoar-me com simpatia.
Não estou a defender o amigo útil somente
Não estou a pensar bem deste que faz o meu esforço
[e puxa
Não penso que ele me ouve tudo e puxa mais forte
[assim.
Há coisas deste companheiro para pensar melhor
[e espalhar.
Falo agora somente só de simpatia.
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
OS OLHOS DOS ANIMAIS
Vários poetas contemporâneos de Fernando Pessoa ficaram na sombra da sua imensa figura e obra. Talvez o primiro d todos eles seja este extraordinário poeta de Amarante que é Teixeira de Pascoaes.
TEIXEIRA DE PASCOAES (1877 – 1952)
OS OLHOS DOS ANIMAIS
Que triste o olhar do cão! Até parece
Mais um queixume, um íntimo lamento
Da noite interior que lhe escurece
O coração, que é todo sentimento.
E os mansos bois soturnos! Que tormento,
Em seus olhos, tão calmos, transparece...
E os olhos da ovelhinha e do jumento!
Que tristes! Só o vê-los entristece...
Chora, em todo o crepúsculo, a tristeza.
E, além do ser humano, a Natureza
É lívida penumbra feita de ais...
Por isso, o vosso olhar de escuridão
É mais lágrima ainda que visão,
Ó pobres e saudosos animais!
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
CARTA AOS AMIGOS MORTOS
Nos últimos tempos foram-se embora alguns amigos muito queridos. Tenho-me recordado muito deste poema da nossa grande Sophia.
CARTA AOS AMIGOS MORTOS
Eis que morrestes – agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
- O olhar não atravessa esta distância –
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva.
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo.
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar em frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil.
Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna.
E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado.
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e de meu canto.
CARTA AOS AMIGOS MORTOS
Eis que morrestes – agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
- O olhar não atravessa esta distância –
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva.
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo.
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar em frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil.
Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna.
E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado.
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e de meu canto.
sábado, 27 de setembro de 2014
O QUE FAZEMOS NÓS, RAPAZES D' HOJE?
Durante algum tempo embirrei solenemente com a poesia de António Nobre e com os seus "inhos" todos. Achava-o kitsch, piroso, associava-o àqueles poemas que nos obrigavam a decorar na escola primária nos idos dos anos 50.
Mais tarde, talvez com outra maturidade, comecei a lê-lo de forma diferente e a perceber a emoção de um lirismo levado quase ao limite da lágrima. E creio que ganhei muito com esta mudança. À distância de 150 anos apesar de todas as diferenças, a poesia de Nobre fala-nos ainda de nós portugueses, de como, continuamos iguaizinhos a nós próprios e iguais na relação umbilical à terra, ao sol, ao mar, à humanidade multifacetada que nos fez e continua a fazer.
E veja-se se este soneto não podia quase ter sido escrito hoje ou ontem.
ANTÓNIO NOBRE (1867- 1900)
Quisera ser um grande marinheiro,
Um novo astro entre os milhões de sóis!
Ser de Albuquerque um filho aventureiro,
Pertencer à família dos Heróis!
Ou então ser um simples pegureiro,
Viver, ao Sol, no monte com os bois...
Ou, antes, ser um pescador trigueiro:
Nascer no Oceano e ficar, lá, depois!
Quisera ser “alguém”: para isso creio
Que vim ao mundo, a Humanidade veio,
E à Vida nos lançaram nossos Pais:
Mas o que faço eu, (e o tempo foge),
O que fazemos nós, rapazes d’hoje?
Bebemos e fumamos, nada mais!...
Mais tarde, talvez com outra maturidade, comecei a lê-lo de forma diferente e a perceber a emoção de um lirismo levado quase ao limite da lágrima. E creio que ganhei muito com esta mudança. À distância de 150 anos apesar de todas as diferenças, a poesia de Nobre fala-nos ainda de nós portugueses, de como, continuamos iguaizinhos a nós próprios e iguais na relação umbilical à terra, ao sol, ao mar, à humanidade multifacetada que nos fez e continua a fazer.
E veja-se se este soneto não podia quase ter sido escrito hoje ou ontem.
ANTÓNIO NOBRE (1867- 1900)
Quisera ser um grande marinheiro,
Um novo astro entre os milhões de sóis!
Ser de Albuquerque um filho aventureiro,
Pertencer à família dos Heróis!
Ou então ser um simples pegureiro,
Viver, ao Sol, no monte com os bois...
Ou, antes, ser um pescador trigueiro:
Nascer no Oceano e ficar, lá, depois!
Quisera ser “alguém”: para isso creio
Que vim ao mundo, a Humanidade veio,
E à Vida nos lançaram nossos Pais:
Mas o que faço eu, (e o tempo foge),
O que fazemos nós, rapazes d’hoje?
Bebemos e fumamos, nada mais!...
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
O MAR INVADE TUDO
Ao longo da vida tenho acompanhado colecções de poesia mais ou menos breves, mais ou menos duradouras, que têm publicado livros inesquecíveis e têm divulgado poetas de outras línguas que de outra forma não teríamos conhecido.
Lembro-me dos Cadernos de Poesia da D. Quixote, da colecção de poesia da Campo das Letras, da Presença, da Limiar, da Nova Realidade e, entre muitas outras, desta colecção da Quetzal doutros tempos.
"Lisboas" será seguramente um dos livros que eu guardaria entre os mais importantes que se publicaram nas últimas décadas.
O seu autor é um poeta que acompanho a par e passo há muitos anos. Gosto da sua escrita, complexa, por vezes dura, mas trazida cá para fora no fio da urgência de tornar palavra cada degrau da vida
A INUNDAÇÃO
O mar invade Lisboa mas por dentro
enquanto o vento enfeita
as filhas dos polícias
e há um vago frio nos olhos
mais dementes
destas tardes.
As crianças vestem
coloridamente
seu mórbido e inesperado
séquito.
Mas nas ruas da Raiva
nota-se uma abundância
palpável
um rio vagamente doloroso
um mar por dentro.
Nas lojas de fazendas
na menina da caixa
no fastio amarfanhado
dos porteiros.
Gotas marítimas notavam-se
no brilho das pulseiras
de uma amante
líquido miúdo mas brilhante
até nas varizes das peixeiras.
Há quem diga do sol
um sol insólito é bem certo
mas nota-se até na cauda dos insectos
piedosas solícitas gotas de humi ( l ) dade.
O mar invade tudo mas por dentro.
Armando Silva Carvalho
domingo, 21 de setembro de 2014
FELICIDADE
Há poemas a que não se deve acrescentar nem um suspiro. É o caso deste de Jorge de Sena.
FELICIDADE
A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.
Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.
FELICIDADE
A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.
Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
MORTE E VIDA SEVERINA
Este poema dramático relata a dura trajectória de um migrante nordestino (retirante) em busca de uma vida mais fácil e favorável no litoral.
Em 1965, Roberto Freire, director do teatro TUCA da PUC de São Paulo pediu ao então muito jovem Chico Buarque que musicasse a obra. Poema e música constituem das mais belas obras brasileiras de sempre.
Em 1966, para grande espanto dos mais atentos, escapando à censura, o espectáculo é apresentado em Lisboa com um tremendo êxito
MORTE E VIDA SEVERINA
(O retirante explica ao leitor quem é e a que vai)
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
OS PÁSSAROS QUANDO MORREM
Lembro-me de o ver passar, pelas ruas de Lisboa, cabelo ao vento, de tudo distraído, transformando em poesia qualquer folha de árvore, qualquer brilho de lua.
Os oficiais da de serviço à poesia, fazedores de pés de barro, deixam-no esquecido na prateleira dos poetas militantes. Por isso é preciso recordá-lo. Uma e outra e outra vez.
Nunca encontrei um pássaro morto na floresta
Em vão andei toda a a manhã
a procurar entre as árvores
um cadáver pequenino
que desse o sangue às flores
e as asas às folhas secas...
Os pássaros quando morrem
caem no céu.
domingo, 14 de setembro de 2014
ALBA
Há uma quantidade de belos poetas açoreanos injustamente pouco referidos
Um deles é o meu amigo Vasco Pereira da Costa, meio dos Açores, meio de Coimbra, xcelente poeta e fantástico dezedor de poesia.
ALBA
Após a chuva desta noite
há um verde que insulta de tão vrde.
Espantam-se as aves com a luz desconhecida.
O sol vai abrir a cancela do mundo.
As baleias espreguiçam ondas sonolentas.
A montanha do Pico afasta o lençol de névoa
e revolteia a sua nudez libertina.
Após a chuva desta noite
há um verde que tanto insulta
que exulta de tão verde.
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
QUIPROQUÓ
Arménio Vieira é um poeta determinante da geração literária caboverdeana de 60.
Foi-lhe atribuído o Prémio Camões em 2009.
Tantas vezes nos esquecemos de beber nos nossos melhores... E o Arménio é um dos nossos melhores, quer dizer, um dos melhores da língua portuguesa.
QUIPROQUÓ
Há uma torneira sempre a dar horas
há um relógio a pingar no lavabo
há um candelabro que morde na isca
há um descalabro de peixe no tecto
Há um boticário pronto para a guerra
há um soldado vendendo remédios
há um veneno (tão mau) que não mata
há um antídoto para o suicído de um poeta
Senhor, Senhor, que digo eu (?)
que ando vestido pelo avesso
e furto chapéu e roubo sapatos
e sigo descalço e vou descoberto.
terça-feira, 9 de setembro de 2014
GOTA DE ÁGUA
Uma pequena e comovente gota de água de Gedeão.
Há quem o ache um poeta menor.
Talvez não valha a pena fazer nenhum comentário.
GOTA DE ÁGUA
Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.
Há quem o ache um poeta menor.
Talvez não valha a pena fazer nenhum comentário.
GOTA DE ÁGUA
Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.
sábado, 6 de setembro de 2014
NO FUNDO DO TEJO
Carlos Queirós viveu pouco e publicou pouco (1907-1949)mas teve uma importância grande na ligação entre o primeiro modernismo português, o da geração da revista ORPHEU e o segundo modernismo, da geração da PRESENÇA.
Sobrinho da famosa Ofélia, a namorada a quem Fernando Pessoa endereçava as suas cartas de amor, Carlos Queirós deixou uma obra curta mas extremamente delicada e cuidada.
Leia-se a sua poesia e encontre-se uma das necessárias raízes para a necessária inovação da poesia portuguesa.
NO FUNDO DO TEJO
Fecho os olhos e vejo
No fundo do Tejo
Uma coisa que oscila ao sabor da corrente;
Que vai e vem, que deambula, rente
Ás pedras e conchas macias e frias,
Dias e noites, noites e dias.
Uma coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a de rojo
No fundo do Tejo;
Uma coisa que eu vejo,
Uma coisa que eu sinto e não sei o que é,
- Tão longe de mim, tão fora de pé.
Uma coisa que os peixes, passando em cardumes,
(Coruscantes e belos como lumes),
Ao vê-la, com espanto, mudam de pista,
Como os burgueses fazem ao artista.
Uma coisa que lembra outra coisa que eu vi,
Num sonho que sonhei – mas que há muito esqueci:
Uma coisa pequena e ao mesmo tempo imensa,
Na sua vagabunda e singular presença.
Uma coisa que anda de cá para lá,
De lá para cá,
No fundo do Tejo;
Sem rumo, sem dono, sem nome, sem graça,
- Inútil e triste como a carcaça
De um caranguejo.
Uma coisa disforme, insensível, alheia,
- Mas que inscreve, sem querer, o meu nome na areia!
Sobrinho da famosa Ofélia, a namorada a quem Fernando Pessoa endereçava as suas cartas de amor, Carlos Queirós deixou uma obra curta mas extremamente delicada e cuidada.
Leia-se a sua poesia e encontre-se uma das necessárias raízes para a necessária inovação da poesia portuguesa.
NO FUNDO DO TEJO
Fecho os olhos e vejo
No fundo do Tejo
Uma coisa que oscila ao sabor da corrente;
Que vai e vem, que deambula, rente
Ás pedras e conchas macias e frias,
Dias e noites, noites e dias.
Uma coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a de rojo
No fundo do Tejo;
Uma coisa que eu vejo,
Uma coisa que eu sinto e não sei o que é,
- Tão longe de mim, tão fora de pé.
Uma coisa que os peixes, passando em cardumes,
(Coruscantes e belos como lumes),
Ao vê-la, com espanto, mudam de pista,
Como os burgueses fazem ao artista.
Uma coisa que lembra outra coisa que eu vi,
Num sonho que sonhei – mas que há muito esqueci:
Uma coisa pequena e ao mesmo tempo imensa,
Na sua vagabunda e singular presença.
Uma coisa que anda de cá para lá,
De lá para cá,
No fundo do Tejo;
Sem rumo, sem dono, sem nome, sem graça,
- Inútil e triste como a carcaça
De um caranguejo.
Uma coisa disforme, insensível, alheia,
- Mas que inscreve, sem querer, o meu nome na areia!
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
PEDRA
Emanuel Félix, poeta açoreano de Angra do Heroísmo, amigo da conversa e do convivio, do petisco e do copo, técnico de restauro de arte sacra, coração do tamanho de um boi.
Partiu ainda cedo, em 1004.
Estive com ele pela última vez numa noite gloriosa em Angra, à volta da mesa, com o Carlos Alberto Moniz, o Vasco Pereira da Costa, o Marcolino Candeias, o Zeca Medeiros.
A sua obra poética é discreta mas tem momentos deliciosos. É daqueles poetas que vale a pena visitar. Com tempo e coração aberto.
PEDRA - POEMA PARA HENRY MOORE
Um homem pode amar uma pedra
uma pedra amada por um homem não é uma pedra
mas uma pedra amada por um homem
O amor não pode modificar uma pedra
uma pedra é um objecto duro e inanimado
uma pedra é uma pedra e pronto
Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um
homem a uma pedra
uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe
onde pouse a cabeça por uma noite
ou sobre a qual edifique uma escada para o alto
Uma pedra é uma pedra
(não pode o amor modificá-la nem o ódio)
Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra
não seja uma pedra e mais nada
mas uma pedra amada por um homem
ame o homem a pedra
e pronto
sábado, 30 de agosto de 2014
QUANDO EU FOR PEQUENO
O José Jorge Letria é um querido amigo e companheiro de há muitos anos, antes e depois do 25 de Abril.
Foi vasta a sua actividade cívica, quer na resistência à ditadura salazarista, quer na construção desta democracia agora a tremeluzir demais para quem gosta da luz clara e da palavra limpa.
O Zé é um poeta amado por uns e mal querido por algumas das senhoras patroas que mandam nas literatices.
A sua obra é vasta e diversa, brilham nela momentos de poesia de rara qualidade.
Alguns dos seus livros são imprescindiveis, nomeadamente "O LIVRO BRANCO DA MELANCOLIA", um dos meus favoritos, de onde saiu este "QUANDO EU FOR PEQUENO".
QUANDO EU FOR PEQUENO
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a ceteza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.
Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.
Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.
Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena
com um lenço branco com as iniciais bordadas
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
Foi vasta a sua actividade cívica, quer na resistência à ditadura salazarista, quer na construção desta democracia agora a tremeluzir demais para quem gosta da luz clara e da palavra limpa.
O Zé é um poeta amado por uns e mal querido por algumas das senhoras patroas que mandam nas literatices.
A sua obra é vasta e diversa, brilham nela momentos de poesia de rara qualidade.
Alguns dos seus livros são imprescindiveis, nomeadamente "O LIVRO BRANCO DA MELANCOLIA", um dos meus favoritos, de onde saiu este "QUANDO EU FOR PEQUENO".
QUANDO EU FOR PEQUENO
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a ceteza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.
Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.
Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.
Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena
com um lenço branco com as iniciais bordadas
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
A FLOR
Por vezes penso que a dimensão imensa de Fernando Pessoa deixou na sombra poetas seus contemporâneos que mereciam outra atenção.
É o caso de Almada Negreiros, alma intensa do nosso modernismo. Grande pintor, desenhador e poeta.
A FLOR
Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!
É o caso de Almada Negreiros, alma intensa do nosso modernismo. Grande pintor, desenhador e poeta.
A FLOR
Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
ESTRELA DA MANHÃ
Manuel Bandeira, outro dos grandes da poesia em português.
ESTRELA DA MANHÃ
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã
ESTRELA DA MANHÃ
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
QUADRILHA
Carlos Drumond de Andrade é um dos maiores poetas da língua portuguesa do séc. XX.
É preciso encontrá-lo. reencontrá-lo, usá-lo e abusá-lo.
Chico Buarque de Holanda inspirou-se várias vezes em Drumond. E a partir deste poema fez uma canção deliciosa gravada num disco ao vivo com maria Bethânia.
Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
É preciso encontrá-lo. reencontrá-lo, usá-lo e abusá-lo.
Chico Buarque de Holanda inspirou-se várias vezes em Drumond. E a partir deste poema fez uma canção deliciosa gravada num disco ao vivo com maria Bethânia.
Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
terça-feira, 19 de agosto de 2014
MEU POVO MEU POEMA
Ferreira Gullar é dos poetas brasileiros que leio com maior entusiasmo. E acho que é preciso lê-lo a ele e a outros.
Não podemos andar tão longe do outro lado o mar.
Ainda por cima o Gullar faz umas colagens deliciosas que até foram publicadas num livro editado pela Caminho.
FERREIRA GULLAR (1930)
Meu povo, meu poema
Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil
Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta
sábado, 16 de agosto de 2014
MARGARIDA FONSECA SANTOS
Quem anda pelas escolas deste país e sabe o esforço que algumas pessoas fazem para a promoção do livro e da leitura conhece o trabalho fantástico da Margarida Fonseca Santos.
Há tempos descobri um livro dela absolutamente delicioso. Nunca o tinha visto em nenhuma livraria.
Quem tem filhos ou netos pequenos procurem este livro e leiam-no com eles. vai ser uma festa.
Há tempos descobri um livro dela absolutamente delicioso. Nunca o tinha visto em nenhuma livraria.
Quem tem filhos ou netos pequenos procurem este livro e leiam-no com eles. vai ser uma festa.
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Ó ÁGUAS DAS NUVENS
Natural do Alvito, Raúl de Carvalho, construiu nos seus anos de poeta uma obra delicada e intensa. É inesquecível para quem o lê o longo poema "SERENIDADE ÉS MINHA" que Mário Viegas gravou com a arte notável que era a sua. É um daqueles poetas que é preciso lembrar quando pululam por aí alguns tantos poetas que nunca serão lembrados.
Na rua molhada,
No vão de uma escada,
Envolto na sombra
Silente da noite,
Um menino dorme
Deitado no azul
Da noite estrelada,
Um menino sonha
Com fadas e luas
E um sol pequenino
Brincando e brilhando
No céu de menino…
Ó águas das nuvens
Descei devagar…
Se o menino acorda
Tem medo da chuva
E fica a chorar…
Na rua molhada,
No vão de uma escada,
Envolto na sombra
Silente da noite,
Um menino dorme
Deitado no azul
Da noite estrelada,
Um menino sonha
Com fadas e luas
E um sol pequenino
Brincando e brilhando
No céu de menino…
Ó águas das nuvens
Descei devagar…
Se o menino acorda
Tem medo da chuva
E fica a chorar…
Subscrever:
Mensagens (Atom)