quinta-feira, 27 de agosto de 2015

JORGE GOMES MIRANDA


JORGE GOMES MIRANBDA nasceu no Porto em 1965 e tem uma vasta obra espalhada em inúmeras editoras, com livros difíceis de encontrar. É um poeta com uma atenção ao quotidiano que me agrada e emociona frequentemente.


MOLA DE ROUPA

Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.
Um prédio com dez andares
e ele tinha logo que viver no último,
tendo como horizonte o mar
de terraços e antenas parabólicas.

Quando, chegado com a roupa
da máquina de lavar,
pega em mim,
de suas mãos eu deslizo para o chão.
Apressado, em vez de me apanhar
imediatamente, escolhe outra;
no final, atira-me para o cesto
de verga.

Não é que seja particularmente ardilosa,
mas verdade seja dita, preferia ser
mola de rés-do-chão,
dessas que faça sol ou chuva
sempre prendem a roupa numa corda
estendida no pátio.
O destino quis-me feita de plástico,
com um coração inclinado à melancolia.
Tenho, no entanto, como divisa
antes quebrar que torcer.

Sonho com o dia em que nas mãos da criança
serei um comboio.


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

CARLOS ALBERTO MACHADO


Carlos Alberto Machado , (1954) poeta, dramaturgo, romancista, ensaista, trabalha nas áreas do teatro, animação e gestão cultural.



DESCULPA DESCULPA



(para a Mulher Azul)



Desculpa desculpa
nem sei o teu nome
só olhei para ti deitada
na via do infante
quinze de agosto
mil novecentos e noventa e nove
olhei várias vezes sem perceber
olhei-te pois e estavas azul
sobretudo no rosto e nos pés
cuspida na valeta
(ó mãe os carros cospem?)
noutras circunstâncias diria olá!
agora assim azul e a pulsação quase nada
qual era a tua cor antes do azul?
se ainda receberes a tempo este telegrama
responde-me por favor
o apartado está no verso.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

EDUARDA CHIOTE

Eduarda Chiote, nascida em 1930, tem uma obra vasta, intensa, caminhando nalguma forma de margem.


NA MORTE ESTÁ DOENDO INCRIVELMENTE


Vontade de ter perdido a vontade,
acabei por me enfiar por um corredor à minha procura,
a enfermaria usava nesse dia chinelos azuis e bata da mesma cor,
emocionei-me com os meus passos
no céu
e desejei que as seringas me recusassem as veias: a porta do quarto
[entreaberta sorriu-me
como se ela mesma tomada de espanto
me garantisse nada é tão terrível como imaginas,
evadiste-te.
E já nem os teus
órgãos - em tempestade. O vidro do soro balançava no vazio
como quando as minhas palavras gota
a gota.
Quero agora esquecer que há poemas com muitas receitas,
contas por pagar,
unhas que se esgotam
nos dedos; páginas separadas do livro - são as contingências,
as contingências.
Nada pode ser assim tão ruim: tive alta, mas aqui,
na morte,
está doendo incrivelmente.
«A vida corrói mesmo»,
é uma iniquidade, uma iniquidade: tornei-me tão
insuficiente
que se ninguém
aparecer
não tem importância nenhuma.
Só te peço que guardes de mim uma pequena recordação, pois nela
permaneceremos: a tua escrita e a minha
autobiografia


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

BÉNEDICTE HOUART


Bénédicte Houart é filha de pai belga e mãe portuguesa, nasceu em Braine-le-Conte, uma pequena cidade nos arredores de Bruxelas, em 1968. Mudou-se ainda na infância para Portugal, em 1975, onde tem vivido desde então. Crescendo bilíngue, adotou a língua portuguesa por pátria, como diria Pessoa.


já penélope não sou
nem ulisses regressa
mudo de nome noite
a noite ao sabor da saliva
dos meus amantes
de dia troco lençóis
coso bainhas
descanso os olhos
dantes tecia para
enganar a corte que
me servia de prisão
agora chamo-me eu
não tenho estado civil e
na cela que me tem cativa
tornei-me finalmente livre


quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ANA PAULA INÁCIO


Começo a publicar aqui poetas de que gosto daqueles que talvez sejam menos divulgados.

Começo com ANA PAULA INÁCIO



amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em código toda a escrita.

Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

AN A MARIA MACHADO

Eu sabia que Ana Maria Machado é uma importantíssima escritora brasileira.

Resistente activa à ditadura brasileira. Presa e exilada na Europa.Integra a Presidência da Academia Brasileira de Letras. Premiada em 2000 com o Prémio Hans Christian Andersen, o mais importante prémio atribuído no mundo à literatura infantanto-juvenil.


O maior prazer foi conhecê-la pessoalmente quando aqui esteve emn Fevereiro durante o 1º ENCONTRO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DA LUSOFONIQA (atenção que o 2º está quase a ser anunciado).

Como é que ela é? Ana Maria Machado é uma mulher. Nem assim nem assado. Apenas uma grande mulher. E uma grande escritora. Conversei muito com ela. Fui à televisão com ela. Aprendi com ela. Acompanhei-a a uma escola onde conversou e contou as suas histórias aos nossos alunos. Deixou-os encantados.

A sua obra é muito extensa. Disse-me ela que em traduções já vendeu cerca de 22 milhões de livros no mundo!!! Mas pouco ou nada se vendem em Portugal. Nem o seus livros nem os dos autores brasileiros em geral.

Os portugueses no Brasil não têm também grande sorte. Há que desfazer estes nós que impedem a circulação da narração em língua portuguesa e dos riquíssimos e tão diversos imaginários cuja diversidade só nos engrandece. Para isso nasceu e vai continuar o ENCONTRO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DA LUSOFONIA.

Entretanto, quem conseguir encontrar um ou dois dos raros livros de Ana Maria Machado em Portugal, não exite. Compre-o. Compre muitos exemplares. Ofereça aos filhos, aos netos, aos pais, aos presidentes, aos ministros da educação e da deseducação e...

O Pavão do abre e fecha é uma delícia. Às vezes aparecem alguns exemplares nos recantos mais obscuros de algumas feiras do livro.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

AMORES DE FAMÍLIA


Gosto da Carla Maia de Almeida. Gosto daquilo que ela escreve. "Quando é que chegamos?", "Irmão lobo", "Não quero usar óculos" e outros, são livros deliciosos e marcos importantes na recente literatura infanto-juvenil em Portugal.

Estes "Amores de família" constituem um aventura muito curiosa e es nomes de deuses da antiguidade clássisa. Trata-se de um livro aberto a muitas leituras de pais e professores que bem sabem como a leitura de um livro em conjunto com uma criança pode abrir-lhes caminhos múltiplos para melhor entendere o mundo e também para se entender a si própria.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

PALAVRAS QUE NÃO TENHAM SIDO MANIPULADAS


Israelita, romancista, pacifista, de esquerda (também existe esquerda em Israel), David Gossman é um escritor intenso e comovente a quem morreu um filho na guerra do Líbano e que continuou a escrever porque é a maneira "que tenho de explicar a minha vida."

Segundo Gossman:

"É preciso clarificar a linguagem. É importante encontrar palavras que não tenham sido manipuladas."

As palavras precisam de ser limpas da banalidade a que a utilização que lhes é dada no quotidiano as condena. É esse o trabalho da literatura e da poesia.-

(Citações retiradas da entrevista publicada no Expresso de 01.08.15)


segunda-feira, 3 de agosto de 2015

ACREDITO


Tenho de confessar que sou admirador do escritor David Machado e um leitor atento e entusiasta da sua obra quer seja do lado do romance quer seja do lado da literaturainfanto-juvenil.

Aliás, acaba de ser reconhecida a sua qualidade como romancista, tendo sido um dos 12 vencedores do Prémio da União Europeia para a Literatura para autores em início de carreira, com o romance "Índice Médio de Felicidade".

Quando falo de literatura infanto-juvenil é preciso sublinhar a palavra literatura. Tem sido costume olhar para a literatura infanto-juvenil como uma sub-literatura. Uma coisa menor.

Disto têm culpa os que misturam literatura e historinhas de 3 o pataco, por vezes com linhaqs narrativas muito bem intencionadas e cheias de estrelinhas, e peixinhos e outros inhos que tal. Disto tem também culpa quem não se preocupa com a qualidade da sua escrita pensando que, se é para crianças, qualquer coisa serve.

David Machado é um autor de literatura infanto-juvenil na linha de Matilde Rosa Araújo, Manuel António Pina ou António Torrado.

Este seu último livro, feito a meias com o excelente ilustrador que é Alex Gozblau, é uma verdadeira pérola.

As palavras são poucas. Talvez tudo se possa resumir a uma palavra: "Acredito". O resto é um encanto para a vista e um feixe de rios por onde o menino e o pai ou a mãe podem caminhar para dentro da poesia, na construção dos valores humanos indispensáveis ao crescimento dos nossos meninos.