terça-feira, 30 de setembro de 2008

OS LIVROS



A avó

Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pêlo dele preto e brando

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro



Manuel António Pina

domingo, 28 de setembro de 2008

RILKEANA




Eines ist, die geliebte zu singen


Como cantar o amado?

Quem ama
fica cheio de não-saber
não pára de procurar

Entrevendo o fulgor do êxtase
percorre o rio de sangue
conhece os horrores da guerra íntima
toda vermelha e crua
fértil em rupturas
incessante nos ataques

Não
nenhum rosto materno sobre o nosso debruçado
nos consolaria
se houvesse esse rosto
essa ternura impossível de entender

Nada nos pode consolar
do excessivo peso do amor
que oprime como a noite
cheia de não-saber
como tudo o que é divino
e inventado

De facto
não amamos como as flores
totalmente simples na sua entrega
Quando amamos
deixamos de ser o que somos
transfigurados pelo desejo
que mata
destrói
violenta tudo

E perscrutando a noite
que a si própria se escava e aplaina
amando
fitamos a intermitência das estrelas
deslumbrados por um brilho extinto
que fere com lentidão sideral
o ermo íntimo do nosso coração

Inatingível sempre
e como tal desejado
o verdadeiro amado


Ana Hatherly

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

IMAGIAS





POEMA QUE SE DEVIA

Este poema devia ser para ti, devia
falar de carrosséis ou sinos (as palavras
que aqui me conduziram e me obrigaram
à angústia).
O ponto mais pretérito da angústia
devia estar neste poema, que seria
para ti.

Nele, eu embrulharia muitas coisas:
calendários indóceis, facturas por pagar,
livros deixados por ler à mesa da cabeceira,
anúncios recortados de nuvens
ou jornais.

Acrescentando também os carrosséis, os tais
de que falava acima, e os sinos
que todavia teimam em tocar a horas renitentes.
Tudo isto eu deveria dizer
Neste poema: ternuras por pensar e muitas dívidas
impensáveis e doces.

Usaria então breve vocabulário sempre igual,
as mesmas palavras que há anos têm sido
as minhas metáforas idênticas
em ponto mais pretérito de angústia.

Seria então um poema que se devia
a toda a gente, especialmente a ti,
um pequeno berlinde que eu nunca soube jogar,
porque, no tempo em que vivi, o que se usava
era canções de roda e bonecas
de tranças a fingir.

Escrito no ponto mais pretérito
da angústia,
aspiraria à linguagem mais simples
das coisas menos simples,
como facturas de vida,
contas de hospital – ou ainda um abat-.jour
de impossível partilha.

Pensando bem, com um perfil assim, este poema
nem devia ser um poema, mas um grito,
ou uma voz em branco,
escrito no pretérito mais que perfeito
de tudo, a sua angústia a concordar com tempo
e modo. E os sinos reticentes
em música de fundo.


Ana Luísa Amaral

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

NA ESTRANHA CASA DE UM OUTRO



POEMAS DO ELÉCTRICO
´
PARAGEM II

A cidade é imóvel e o eléctrico
avança alheio
pela preguiça amarela que o sustenta

Mas se chove,
cola-se-lhe o peso da cidade ao corpo
partilha velada de um movimento baço.

Idênticos a cidade e o eléctrico
no mesmo lento vagar molhado:

a água arrasta a calçada pelo carril
folhas e pombos pingam dos fios
e há sempre uma estátua ou outra
a escorrer no vidro


Rita Taborda Duarte

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

QUERIDAS BIBLIOTECAS: UM ANO JÁ LÁ VAI

Faz hoje um ano que comecei esta aventura chamada “Queridas Bibliotecas”. Começou sem programa definido. Fui desfiando memórias, partilhando poesia, leituras, imagens, canções…

Fui descobrindo que a necessidade de comunicar faz com que as pessoas se juntem em volta de sonhos, de ideias, de imagens, de desabafos e que, mesmo a blogosfera acaba por ser uma rua de janelas abertas por onde os afectos crescem, a partilha floresce, as ideias permanecem vivas.

Encontrei aqui companheiros antigos e novos.

17.800 visitantes num ano, cerca de 50 por dia. É obra.

Alguns deixaram posts. E que bom que é receber um abraço, um beijo, uma palavra doce de tantas e tantos amigos que passam por aqui, ás vezes apenas para desejar Boa Semana!

Sei também que muito me visitaram professores e alunos de escolas, gente da maravilhosa aventura das bibliotecas onde se lêem os meus livros e onde vou passando para deixar palavras, emoções, gargalhadas, sementinhas que talvez venham a dar flor num futuro mais breve ou mais longo

Todos nós formamos um grupo fantástico que nem sabe exactamente os seus contornos. Gente que acredita que a raiz do pensamento não pode ser cortada, que a palavra ilumina, que os amigos trazem sempre outro amigo também.

Por tudo isso e muito mais espero continuar a fazer deste cantinho uma casa de porta aberta boa para se visitar de vez em quando.

E já agora, deixo um poema aos que, como eu, são e sempre foram sonhadores insubordinados e inquietos no mais belo sentido da palavra.

BALANÇO PROVISÓRIO

Estamos mais gordos mais magros
talvez mais denso
ou mais pesado o nosso olhar
temos pressa de ternura
angústias de vez em quando
e umas contas de telefone atrasadas
para pagar.

Temos falta de cabelo
três ou quatro cicatrizes
sofremos de inquietação.
Muitas vezes nos disseram
como é rápido o deslize
mesmo assim nunca deixámos
de dar corda ao coração.

Daqueles que já partiram
guardamos silêncio e nome
e uma improvável mistura
de amargura e rebeldia
nas palavras desordeiras
que dizem redizem cantam
relembrando dia a dia
como é feita de azinheiras
a capital da alegria.

Muitas ondas já morreram
outras tantas vão nascer
muitos rios já se cansaram de correr até á foz
águas claras que se foram
outras águas se turvaram
e agora restamos nós.

Somos muitos somos poucos
calmamente radicais
sabemos vozes antigas
trazemos a lua ao peito
amamos sempre demais.

Neste caminho tomado
fomos traídos trocados
vendidos ao deus dará.
Nem por isso desistimos
e assim nos vamos achando
perdidos de andar às voltas
nas voltas que a vida dá.

Somos uns bichos teimosos
peixes loucos aves rindo
plantas poetas palhaços
e portanto resumindo
somos mais do que nos querem
estamos vivos
somos lindos!


José Fanha

sábado, 20 de setembro de 2008

QUANDO NÃO SOUBERES COPIA




A linha do horizonte faz uma curva perigosa e está fora de mão.
A linha do horizonte, afinal, é um embuste linear e um veículo mal conduzido.
Quem lhe deu toda esta grandeza esqueceu-se de que lhe
estava a dar todo o poder. Ouviste, Deus?, é contigo.
Ou será que te enganaste e não percebeste que o horizonte
não é para ver de cima? Já não é a primeira vez que te apanho em falso.
Repara nos homens.
Nas guerras.
Na fome.
Nos incêndios e nas cheias.
Queres pior?
Repara na mentira.
Queres um resumo? Repara em ti.
Já sei, já sei. Para estes casos tu não és nenhuma entidade
superior, tu és dentro de cada um de nós.
Mas a multa do horizonte fora de mão, pagas tu.


Fernando Tordo

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

LIÇÕES DE MESTRES




Comecei a ler e logo fiquei apaixonado. Primeiro pelo delicioso prefácio do José Gomes Ferreira. Depois, pela viagem pelos primeiros anos do século na volta da monarquia para a república com maçons, republicanos, carbonários, polícias e padres, prisões e fugas. Um fartote. Finalmente, pelo prazer da prosa adornada, excessiva, colorida mas extraordinariamente saborosa de mestre Aquilino. Prosa de mastigar lentamente como o vinho forte. Prosa para leituras de outro tempo, um tempo em que alguns tinham tempo para ler.

Quando entrei para Belas-Artes nos finais dos anos 60, aprendi que havia os professores e havia os mestres. Os mestres eram homens de letras ou artes reconhecidos pela substância do seu ofício e pela dimensão ética e humana da sua figura.

Mestre Aquilino, mestre Almada Negreiros, mestre Abel Manta, mestre Sá Nogueira, mestre Lagoa Henriques, mestre Frederico George… Conheci pessoalmente ou fui aluno de alguns. Outros via-os passar e seguia-lhes os passos com o respeito e admiração.

Eram mestres. E essa ideia de mestria no oficio conferia-lhes uma condição excepcional no acto do ensino, fazendo com que também como professores fossem considerados mestres, homens que sabiam fazer, que conheciam por dentro as traves com que se cosia a arquitectura da sabedoria e que faziam convergir a sabedoria do fazer e a do reflectir sobre esse fazer.

Esta ideia de mestre estava intimamente ligada à ideia da dúvida como método, da questionação permanente, da excelência, conceito tão contrário ao de banalização dos saberes de pacotilha que reina no nosso ensino com as devidas e honrosas excepções.

Talvez já aqui tenha colocado esta afirmação de Georges Steiner. Seja como for, vale a pena repetir:

"Para se ser professor é preciso ser-se um dador, ser-se um pouco louco, é preciso estar-se nu e não ter vergonha da nudez.”

É assim que são os verdadeiros mestres. Um pouco loucos, nus perante o mundo e orgulhosos de tudo questionarem através dessa nudez.~

Cá para mim, um professor deve ser uma pessoa que esteja a arder de amor por cada palavra e pronto a ajudar os seus alunos a sair pela janela na rota das andorinhas.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Lacoonte, rimas várias, andamentos graves



como a sentir a tua cara rente

como a sentir a tua cara rente
à minha e as tuas mãos nas minhas, ou
como se a dança amarguradamente
nos desse nesta noite ainda um slow

levado a medo, apenas a ternura
a conduzir de leve os nossos passos
e o corpo estremecendo-te à procura
do seu lugar na grade dos meus braços,

e a luz, fina película de vidros
por entre a frialdade de Janeiro,
a trespassar os corações partidos
estranhamente, e o meu sendo o primeiro,

como se não desse o que doía
na própria dor tingida de alegria.

Vasco Graça Moura

terça-feira, 16 de setembro de 2008

ANALOGIA E DEDOS



NOÉ

Pronto, pronto, eu faço. Dá um trabalhão
mas faço. Corto madeira, arranjo pregos,
gasto o martelo. E o pior também:
correr o mundo a recolher os bichos
coisas de nada como formigas magras,
e os outros, os grandes, os que mordem
e rugem. E sei lá quantos são!
Em que assados me pões. Tu
gastaste seis dias, e eu nunca mais acabo.
Andar por esse mundo, a pé enxuto ainda,
e escolher os melhores, os de melhor saúde,
que o mundo que tu queres não há-de nascer torto.
Um por um, e por uma, é claro, é aos pares
- o espaço que isso ocupa.

Mas não é ser carpinteiro,
não é ser caminheiro,
não é ser marinheiro o que mais me inquieta.
Nem é poder esquecer
a pulga, o ornitorrinco.
O que mais me inquieta, Senhor,
é não ter a certeza de não valer a pena
é partir já vencido para outro mundo igual.

Pedro Tamen

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

ASAS

Começam hoje as aulas pelo país fora. Alguns professores vão ajudar meninos a ganhar asas. Outros vão apenas cumprir o programa e aceitar, bem comportadinhos, todas as palermices que os mandarem fazer. Tenho pena destes últimos porque nunca ganharão asas nem ajudarão ninguém a aprender a voar.

Aos primeiros envio um beijo, um abraço e este poema. Eles sabem, ou pelo desconfiam, que ensinar é um acto mágico que está para lá de todas as burocracias, um acto em que cresce o aluno e o mestre e em que ambos aprendem a soltar as asas.


ASAS

Nós nascemos para ter asas, meus amigos.
Não se esqueçam de escrever por dentro do peito: nós
nascemos para ter asas.
No entanto, em épocas remotas, vieram com dedos
pesados de ferrugem para gastar as nossas asas como
se gastam tostões.
Cortaram-nos as asas para que fôssemos apenas
operários obedientes, estudantes atenciosos, leitores ingénuos
de notícias sensacionais, gente pouca, pouca e seca.
Apesar disso, sábios, estudiosos do arco-íris e de coisas
transparentes, afirmam que as asas dos homens crescem
mesmo depois de cortadas, e, novamente cortadas,
de novo voltam a ser.
Aceitemos esta hipótese, apesar não termos dela
qualquer confirmação prática.
Por hoje é tudo. Abram as janelas. Podem sair.

José Fanha

domingo, 14 de setembro de 2008

A MATÉRIA DO POEMA



POÉTICA

Quero que o meu poema fale de barcos e de azul, fale
do mar e do corpo que o procura, fale de pássaros e
do céu em que habitam. Quero um poema puro, limpo
do lixo das coisas banais, das contaminações de quem
só olha para o chão; um poema onde o sublime nos
toque, e o poético seja a palavra plena. É este poema
que escrevo na página branca com a parede que
acabou por ser caiada,com as suas imperfeições
apagadas pela luz do dia, e um reflexo de sol
a gritar pela vida. E quero que este poema desça
as caves onde a miséria se acumula, aos bancos onde
dormem os que não têm tecto nem esperança,
as mesas sujas dos restos da madrugada, às
esquinas onde a mulher da noite espera o último
cliente, ao desespero dos que não sabem para onde
fugir quando a morte lhes bate à porta. E canto
a beleza que sobrevive ás frases comuns, às
palavras sujas pelo quotidiano dos medíocres,
aos versos deslavados de quem nunca ouviu
o grito do anjo. E digo isto para que fique, no
poema, como a pedra esculpida por um fogo divino.

Nuno Júdice

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A CRIANÇA EM RUÍNAS





na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. Mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.


José Luís Peixoto

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

LISBOAS




PRAÇA DAS FLORES





Foi na Praça das Flores que eu perdi o meu império,
numa tarde morna e com um gato preto
a tirar medidas ao desastre.
Que pracinha bela, quando se tem amantes, dinheiro
e um pouco de melancolia verde
e leviana.
Durante muito tempo fui um colono
dos seus arrabaldes.
Escrevia por conta e portava-me mal com quem queria
pagar-me a autoridade das palavras.
Mas sempre era um império dos sentidos.

De dia a praça não havia, só havia o príncipe
real com a sua cuidada freguesia
de paus-santos e artes da restauração.
Eu vivia num império de frases, sem noite,
como sempre quiseram que fossem os impérios,
talvez para que rutilem mais as fardas
que os sabem defender.

Mas nessa tarde, depois de uma decadência arrastada
e muito inglesa, lembrei-me de chorar,
pois não havia mais lugar para tanto súbdito
oculto nos sentimentos banais
do território.

A Praça das Flores com o seu jardim minúsculo
e as suas grades cobertas de alegria mansa
era o melhor pedestal para a minha estátua deposta
já passava das três e até tinha chovido.

Como se fosse agora, lembrava-me do gato preto
e da minha perda de poderes absolutos.

Nunca ouvi dizer que o choro fosse a melhor arma da revolta,
mas houve uma batalha.
Sentia o corpo dividido em dois países,
a lutar com as mesmas munições.
E eu fui por mim de mim
destituído.

Sereníssima praça sem ruídos nem desassossegos,
área campal de soluços que outrora
eu bebi como se fossem balas:
vim hoje visitar-te.
Sem armas nem bagagens,
sento-me num banco evidentemente velho
e sem governo.

E devagar, ao longe, com a mesma negra
medida do destino,
eu vejo aproximar-se novamente
o gato.


Armando Silva Carvalho

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O LIVRO BRANCO DA MELANCOLIA




QUANDO EU FOR PEQUENO

Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a ceteza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena
com um lenço branco com as iniciais bordadas
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.


José Jorge Letria

sábado, 6 de setembro de 2008

O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES





Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora - os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.



Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

SENHORA DAS TEMPESTADES






QUARTO POEMA DO PESCADOR

Sei agora que Deus rola nas ondas
vem na última onda ei-lo na espuma
é reflexo brilho incandescência.
Se vou à pesca é para o procurar
se lanço a linha é para ver se o pesco
quando pesco um robalo eu pesco Deus
e é com ele que falo em frente ao mar
ele é seixo a alga o vento leste
a nuvem que lentamente cobre a lua
ele é a minha dispersão e a minha comunhão
o fragmento de estrela que se vê ainda
a tainha que salta
ele é o grão de areia e a imensidão da noite
o finito e o infinito
vai na corrente corre-me no sangue
não sei que nome dar-lhe
digo Deus
ele é o laço que me prende e me desprende
o que palpita em mim e o que em mim morre
vem na sétima onda e bate no meu pulso

ele é o aqui o agora o nunca mais
a morte que está dentro
rola na onda
bate na sétima costela do meu corpo
chamo-lhe Deus porque ele é o tudo e é o nada
eternidade que não dura sequer o eu dizê-la
ei-lo na espuma na lua no reflexo
de repente um esticão a cana curva-se
é talvez um robalo de seis quilos
isto é a pesca
o meu falar com Deus ou com ninguém
sozinho frente ao mar.

Ele é o vento a noite a solidão
O robalo que luta contra a morte
E é a minha ligação magnética com Deus
Esse umbigo do mundo
Que rola sobre as ondas e cai do firmamento
Com sua espuma e sua luz e sua noite
Chamo-lhe Deus porque não sei como chamar
Ao meu ser e não ser
De noite junto ao mar
Quando regulo a amostra e sua fluorescência
Pescando robalos
Ou talvez Deus
E sua ausência.


Manuel Alegre

LIVROS INDISPENSÁVEIS

Depois dos “Poetas Fora de Moda” pareceu-me interessante assinalar alguns dos livros que, quanto a mim, marcam fortemente a minha forma de ver e amar a poesia portuguesa.

São livros que leio repetidamente, verdadeiras luzes que julgo virão a assinalar no futuro o que de melhor se tem escrito neste período que vai do final de um século aos primeiros anos de outro século.

São por certo grandes momentos do ofício, do talento e da inspiração dos poetas.

Não pretendo que sejam os únicos. São a minha escolha. São os que julgo que deviam estar na mesa de cabeceira de todos aqueles para quem a poesia é indispensável para se encontrarem e se perderem, para se questionarem, para respirarem nessa língua que é o melhor da arte de ser português.