segunda-feira, 29 de setembro de 2014

CARTA AOS AMIGOS MORTOS

Nos últimos tempos foram-se embora alguns amigos muito queridos. Tenho-me recordado muito deste poema da nossa grande Sophia.




CARTA AOS AMIGOS MORTOS

Eis que morrestes – agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
- O olhar não atravessa esta distância –
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva.
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo.
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar em frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil.

Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna.

E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado.
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e de meu canto.


sábado, 27 de setembro de 2014

O QUE FAZEMOS NÓS, RAPAZES D' HOJE?

Durante algum tempo embirrei solenemente com a poesia de António Nobre e com os seus "inhos" todos. Achava-o kitsch, piroso, associava-o àqueles poemas que nos obrigavam a decorar na escola primária nos idos dos anos 50.

Mais tarde, talvez com outra maturidade, comecei a lê-lo de forma diferente e a perceber a emoção de um lirismo levado quase ao limite da lágrima. E creio que ganhei muito com esta mudança. À distância de 150 anos apesar de todas as diferenças, a poesia de Nobre fala-nos ainda de nós portugueses, de como, continuamos iguaizinhos a nós próprios e iguais na relação umbilical à terra, ao sol, ao mar, à humanidade multifacetada que nos fez e continua a fazer.

E veja-se se este soneto não podia quase ter sido escrito hoje ou ontem.


ANTÓNIO NOBRE (1867- 1900)



Quisera ser um grande marinheiro,
Um novo astro entre os milhões de sóis!
Ser de Albuquerque um filho aventureiro,
Pertencer à família dos Heróis!

Ou então ser um simples pegureiro,
Viver, ao Sol, no monte com os bois...
Ou, antes, ser um pescador trigueiro:
Nascer no Oceano e ficar, lá, depois!

Quisera ser “alguém”: para isso creio
Que vim ao mundo, a Humanidade veio,
E à Vida nos lançaram nossos Pais:

Mas o que faço eu, (e o tempo foge),
O que fazemos nós, rapazes d’hoje?
Bebemos e fumamos, nada mais!... 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O MAR INVADE TUDO


Ao longo da vida tenho acompanhado colecções de poesia mais ou menos breves, mais ou menos duradouras, que têm publicado livros inesquecíveis e têm divulgado poetas de outras línguas que de outra forma não teríamos conhecido.

Lembro-me dos Cadernos de Poesia da D. Quixote, da colecção de poesia da Campo das Letras, da Presença, da Limiar, da Nova Realidade e, entre muitas outras, desta colecção da Quetzal doutros tempos.

"Lisboas" será seguramente um dos livros que eu guardaria entre os mais importantes que se publicaram nas últimas décadas.

O seu autor é um poeta que acompanho a par e passo há muitos anos. Gosto da sua escrita, complexa, por vezes dura, mas trazida cá para fora no fio da urgência de tornar palavra cada degrau da vida



A INUNDAÇÃO

O mar invade Lisboa mas por dentro
enquanto o vento enfeita
as filhas dos polícias
e há um vago frio nos olhos
mais dementes
destas tardes.

As crianças vestem
coloridamente
seu mórbido e inesperado
séquito.

Mas nas ruas da Raiva
nota-se uma abundância
palpável

um rio vagamente doloroso

um mar por dentro.

Nas lojas de fazendas
na menina da caixa
no fastio amarfanhado
dos porteiros.

Gotas marítimas notavam-se
no brilho das pulseiras
de uma amante
líquido miúdo mas brilhante
até nas varizes das peixeiras.

Há quem diga do sol
um sol insólito é bem certo
mas nota-se até na cauda dos insectos
piedosas solícitas gotas de humi ( l ) dade.

O mar invade tudo mas por dentro.

Armando Silva Carvalho


domingo, 21 de setembro de 2014

FELICIDADE

Há poemas a que não se deve acrescentar nem um suspiro. É o caso deste de Jorge de Sena.




FELICIDADE


A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.

Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.

E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

MORTE E VIDA SEVERINA



Este poema dramático relata a dura trajectória de um migrante nordestino (retirante) em busca de uma vida mais fácil e favorável no litoral.

Em 1965, Roberto Freire, director do teatro TUCA da PUC de São Paulo pediu ao então muito jovem Chico Buarque que musicasse a obra. Poema e música constituem das mais belas obras brasileiras de sempre.


Em 1966, para grande espanto dos mais atentos, escapando à censura, o espectáculo é apresentado em Lisboa com um tremendo êxito



MORTE E VIDA SEVERINA

(O retirante explica ao leitor quem é e a que vai)

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

OS PÁSSAROS QUANDO MORREM





Lembro-me de o ver passar, pelas ruas de Lisboa, cabelo ao vento, de tudo distraído, transformando em poesia qualquer folha de árvore, qualquer brilho de lua.

Os oficiais da de serviço à poesia, fazedores de pés de barro, deixam-no esquecido na prateleira dos poetas militantes. Por isso é preciso recordá-lo. Uma e outra e outra vez.


Nunca encontrei um pássaro morto na floresta

Em vão andei toda a a manhã
a procurar entre as árvores
um cadáver pequenino
que desse o sangue às flores
e as asas às folhas secas...

Os pássaros quando morrem
caem no céu.

domingo, 14 de setembro de 2014

ALBA


Há uma quantidade de belos poetas açoreanos injustamente pouco referidos

Um deles é o meu amigo Vasco Pereira da Costa, meio dos Açores, meio de Coimbra, xcelente poeta e fantástico dezedor de poesia.


ALBA


Após a chuva desta noite
há um verde que insulta de tão vrde.

Espantam-se as aves com a luz desconhecida.
O sol vai abrir a cancela do mundo.
As baleias espreguiçam ondas sonolentas.

A montanha do Pico afasta o lençol de névoa
e revolteia a sua nudez libertina.

Após a chuva desta noite
há um verde que tanto insulta
que exulta de tão verde.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

QUIPROQUÓ



Arménio Vieira é um poeta determinante da geração literária caboverdeana de 60.

Foi-lhe atribuído o Prémio Camões em 2009.

Tantas vezes nos esquecemos de beber nos nossos melhores... E o Arménio é um dos nossos melhores, quer dizer, um dos melhores da língua portuguesa.



QUIPROQUÓ

Há uma torneira sempre a dar horas

há um relógio a pingar no lavabo

há um candelabro que morde na isca

há um descalabro de peixe no tecto


Há um boticário pronto para a guerra

há um soldado vendendo remédios

há um veneno (tão mau) que não mata

há um antídoto para o suicído de um poeta



Senhor, Senhor, que digo eu (?)

que ando vestido pelo avesso

e furto chapéu e roubo sapatos

e sigo descalço e vou descoberto.


terça-feira, 9 de setembro de 2014

GOTA DE ÁGUA

Uma pequena e comovente gota de água de Gedeão.

Há quem o ache um poeta menor.

Talvez não valha a pena fazer nenhum comentário.



GOTA DE ÁGUA

Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.

sábado, 6 de setembro de 2014

NO FUNDO DO TEJO

Carlos Queirós viveu pouco e publicou pouco (1907-1949)mas teve uma importância grande na ligação entre o primeiro modernismo português, o da geração da revista ORPHEU e o segundo modernismo, da geração da PRESENÇA.

Sobrinho da famosa Ofélia, a namorada a quem Fernando Pessoa endereçava as suas cartas de amor, Carlos Queirós deixou uma obra curta mas extremamente delicada e cuidada.

Leia-se a sua poesia e encontre-se uma das necessárias raízes para a necessária inovação da poesia portuguesa.


NO FUNDO DO TEJO


Fecho os olhos e vejo
No fundo do Tejo
Uma coisa que oscila ao sabor da corrente;
Que vai e vem, que deambula, rente
Ás pedras e conchas macias e frias,
Dias e noites, noites e dias.

Uma coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a de rojo
No fundo do Tejo;
Uma coisa que eu vejo,
Uma coisa que eu sinto e não sei o que é,
- Tão longe de mim, tão fora de pé.

Uma coisa que os peixes, passando em cardumes,
(Coruscantes e belos como lumes),
Ao vê-la, com espanto, mudam de pista,
Como os burgueses fazem ao artista.

Uma coisa que lembra outra coisa que eu vi,
Num sonho que sonhei – mas que há muito esqueci:
Uma coisa pequena e ao mesmo tempo imensa,
Na sua vagabunda e singular presença.

Uma coisa que anda de cá para lá,
De lá para cá,
No fundo do Tejo;
Sem rumo, sem dono, sem nome, sem graça,
- Inútil e triste como a carcaça
De um caranguejo.

Uma coisa disforme, insensível, alheia,
- Mas que inscreve, sem querer, o meu nome na areia!


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

PEDRA





Emanuel Félix, poeta açoreano de Angra do Heroísmo, amigo da conversa e do convivio, do petisco e do copo, técnico de restauro de arte sacra, coração do tamanho de um boi.

Partiu ainda cedo, em 1004.

Estive com ele pela última vez numa noite gloriosa em Angra, à volta da mesa, com o Carlos Alberto Moniz, o Vasco Pereira da Costa, o Marcolino Candeias, o Zeca Medeiros.

A sua obra poética é discreta mas tem momentos deliciosos. É daqueles poetas que vale a pena visitar. Com tempo e coração aberto.


PEDRA - POEMA PARA HENRY MOORE

Um homem pode amar uma pedra
uma pedra amada por um homem não é uma pedra
mas uma pedra amada por um homem

O amor não pode modificar uma pedra
uma pedra é um objecto duro e inanimado
uma pedra é uma pedra e pronto

Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um
homem a uma pedra
uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe
onde pouse a cabeça por uma noite
ou sobre a qual edifique uma escada para o alto

Uma pedra é uma pedra
(não pode o amor modificá-la nem o ódio)

Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra
não seja uma pedra e mais nada
mas uma pedra amada por um homem

ame o homem a pedra
e pronto