quarta-feira, 31 de agosto de 2016

COSTA ANDRADE


Costa Andrade (1936-11009)

Combatente pela liberdade em Angola, autor de poesia e ficção, artista plástico, deputado pelo MPLA em Luanda.


Depois de fazer o liceu no Huambo e no Lubango, frequentou a Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Criou, com Carlos Erverdosa, a Colecção Autores Ultramarinos da Casa dos Estudantes do Império, que tenho vindo a divulgar, e que desempenhou um papel decisivo na divulgação das literaturas africanas de língua portuguesa, especialmente da literatura angolana.

CONTRATADOS

À hora do sol posto
as rolas traçam
desenhos de feitiços sinuosos

caminhos sob a calma das mulembas

e abraços de segredos e silêncios


...longe ... muito longe
um risco brando
acorda os ecos dos quissanjes
vermelho como o fogo das queimadas
com imagens de mucuisses e luar

Canções que os velhos cantam
murmurando
...e nos homens cansados de lembrar
a distância vai calando mágoas

renasce em cada braço
a força de um secreto entendimento

domingo, 21 de agosto de 2016

MANUEL DOS SANTOS LIMA


Continuando a interrompida visita à poesia publicado em pequnos cadernos pela Casa dos Estudantes do Império, no caso presente em 1961.

Manuel dos Santos Lima é o fundador em 1960 e primeiro comandante do Exército Popular de Libertação, braço armado do MPLA.
Teendo entrado em rotura com a orientação do MPLA, regressou à Europa, estudou a Suiça, foi professor em Universidades do Canadá, Nova York, Paris, entre outras.

Poeta e romancista um pouco esquecido, tenho o orgulho de o conhecer e de poder dizer que somos profundamente amigos.

ESCRAVOS

Os homens acharam-se de peito ao relento,
sem terra,
sem caminho,
sem destino,
homens sozinhos
acorrentados no terreiro
com os caminhos incógnitos do universo
traçados nos rostos atónitos,
homens de peito ao relento,
quissanges dispersos
nas insónias do mar.

terça-feira, 21 de junho de 2016

JOSÉ CRAVEIRINHA



Outro dos livrinhos da CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO, onde aparecem alguns dos extraordinários poemas do início da carreira de José Craveirinha que, quanto a mim, é um dos maiores poetas da língua portuguesa do séc. XX.


Grito negro

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.

domingo, 19 de junho de 2016

VIRIATO DA CRUZ




Nos anos 50 e 60 a CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO, em Lisboa, foi um lar onde vinham habitar estudantes das colónias africanas portuguesas. Transformou-se num lugar de troca de ideias entre muitos dos que viriam a ser os dirigentes dos movimentos de libertação de Angola, Guiné - Cabo Verde e Moçambique.

Foi também um lugar onde cresceu a literatura africana em língua portuguesa e onde publicaram pela primeira vez poetas e escritores que são hoje marcos fundamentais da literatura lusófona de origem africana.

Vou aqui fazer um passeio por alguns dos livrinhos de poesia publicados então pela CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO e editados de novo há pouco pela UCCLA.



NAMORO


Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com a letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas.
sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seu seios laranjas - laranjas do Loge
seus dentes... - marfim...
Mandei-lhe uma carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o Maninjo tipografou:
"Por ti sofre o meu coração"
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou.

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.

Levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficamos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.

Andei barbado, sujo, e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
" - Não viu...(ai, não viu...?) Não viu Benjamim?"
E perdido me deram no morro da Samba.

para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário

Tocaram uma rumba dancei com ela
e num passo maluco voamos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: "Aí Benjamim!"
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.

sábado, 4 de junho de 2016

COME SORVETES VELHA COME SORVETES

No ano passado o Manuel Alberto Valente, finalmente, publicou a sua poesia que andava perdida em publicações mais que esgotadas e inéditos guardados na gaveta.

Só nos resta agradecer e desejar que não se fique por aqui.



Come sorvetes velha come sorvetes
que a morte chega mais cedo doi que pensas
bem melhor será partires toda fresquinha por dentro
com tanto fogo aceso nas paredes de Maio

Além disso ficas mais bonita (tu que já és
de uma criança) com a bolacha esguia
a arrefecer-te os dedos frios e a língua
a saltitar na palidez dos lábios

come sorvetes velha come sorvetes que
tirando os chocolates donosso tio
Fernando Pessoa
os sorvetes são a melhor metafísica
e tornam os dentes incrivelmente brancos

sexta-feira, 29 de abril de 2016

POETAS DE ABRIL E ABRIL, MARIA TERESA HORTA



MULHERES DE ABRIL

Mulheres de Abril
somos
mãos unidas

certeza já acesa
em todas
nós

Juntas formamos
fileiras
decididas

ninguém calará
a nossa
voz

Mulheres de Abril
somos
mãos unidas

na construção
operária
do país

Nos ventres férteis
a vontade
erguida

de um Portugal
que

quarta-feira, 27 de abril de 2016

POETAS DE ABRIL EM ABRIL: JOAQUIM PESSOA



RUAS DE LISBOA

Ruas da minha cidade
veias que o meu sangue abraça
e põe cravos de ansiedade
na lapela de quem passa.

Ruas da minha cidade
onde perco o coração.
Poema diz a verdade!
Diz a verdade canção!

Ruas da minha cidade
amanhecendo a firmeza
duma ponte entre a saudade
e um Abril à portuguesa.

Ruas da minha cidade
onde vingo as minhas asas.
O meu nome é liberdade
e moro em todas as casas.

Ruas da minha cidade
praças da minha alegria
onde antes da claridade
era noite todo o dia.

Ruas da minha cidade
onde o velho é sempre novo:
as ruas não têm idade
porque são todas do povo.

Ruas da minha cidade
becos de ganga puída.
Oficinas da verdade
dos operários desta vida.

Ruas da minha cidade
janelas do meu olhar
onde os pardais da amizade
à tarde vêm poisar.

Ruas da minha cidade
rasgadas por minha mão.
A gente passa à vontade
quando pisa o nosso chão.

Ruas da minha cidade
Aonde eu quero morrer
Com cravos de eternidade
Dos meus olhos a nascer.

terça-feira, 26 de abril de 2016

ABRIL NOS POETAS DE ABRIL: JOSÉ JORGE LETRIA

Comoveme-me muito este poema do meu muito querido amigo José Jorge Letria. É muito importante guardar a memórica fantástica dersses dias e contar vezes sem conta como foi viver ao vivo esses dias no centro do mais furacão da nossa vida.


O QUE AQUELA NOITE ME QUIS DAR


Eu não estava em casa nessa noite, filho,
nem podia estar. Estava nas ruas com os
[soldados
que rumavam às rádios e aos quartéis,
[engalanados
de sombra e de júbilo, a ver o que aquela
[noite
ia dar, o que a nossa liberdade prometia
[ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
desse Abril embalado por uma canção do
[Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, no meu dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse
[mês
capaz de transformar em assombro as
[nossas vidas.
Sim, sou eu neste retrato antigo,
a receber em festa os exilados, os que
[chegavam
com grinaldas de cantigas e a flor de uma
[ilusão
bordada a sangue e espuma no capote das
[nocturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira
[reportagem
do primeiro de muitos dias em que o
[tempo
deixou de contar, em que os relógios
se tornaram corolas de paixão e riso
na lapela larga da alegria desta pátria.

Eu não estava em casa nessa noite, filho,
estava a afinar o coração pelo tom
das mais belas melodias que alguém pode
[aprender
para dar a quem ama a paz de um sono
sem tormento.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

POETAS DE ABRIL EM ABRIL: SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSEN




25 DE ABRIL



Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

quinta-feira, 21 de abril de 2016

POETAS DE ABRIL EM ABBRIL: DE NOVO MANUEL ALEGRE


Um belíssimo sonetoque juntam a guerra, o trabalho e a luta pela liberdade


AS MÃOS

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

terça-feira, 19 de abril de 2016

POETAS DE ABRIL EM ABRIL: MANUEL ALEGRE

Manuel Alegre é o poeta da minha geração, a voz que ilumina os estudantes e dá força e poesia à sua revolta cada vez mais intensa a partir de 68.

Este belíssimo poema que é um dos primeiros de "Praça da Canção" é todo ele um programa do que é a poesia da revolta.


BICICLETA DE RECADOS

Bicicleta de Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado ouvir minha canção.
Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Vem gente para a rua a ver a novidade
como se fosse a chegada
do João que foi à Índia
e era o moço mais galante
que havia nas redondezas.
Eu não sou o João que foi à Índia
mas trago todos os soldados que partiram
e as cartas que não escreveram
e as saudades que tiveram
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.
Desde o Minho ao Algarve
eu vou pelos caminhos.
E vêm homens perguntar se houve milagre
perguntam pela chuva que já tarda
perguntam pelos filhos que foram à guerra
perguntam pelo sol perguntam pela vida
e vêm homens espantados às janelas
ouvir o meu recado ouvir minha canção.
Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.

sábado, 16 de abril de 2016

POETAS DE ABRIL EM ABRIL: DE NOVO ARY DOS SANTOS

Enm Abril trago aqui os poetas de Abril, talvez pelo lado menos bombástico ou menos conhecido.


(imagem reproduzida de carantoonha.blogspot)

INFÂNCIA

Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
Talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto

A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala...
... o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!

quarta-feira, 13 de abril de 2016

POETAS DE ABRIL EM ABRIL: ARY DOS SANTOS

Para celebrar Abril aqui vão alguns poemas dos poetas de Abril. E começamos com Ary.



ARTE PERIPOÉTICA


Aristóteles, visita

da casa de minha avó,

não acharia esquisita

esta forma de estar só

esta maneira de ser

contra a maneira do tempo

esta maneira de ver

o que o tempo tem por dentro.

Aristóteles diria

entre dois goles de chá

que o melhor ainda será

deixar o tempo onde está

pô-lo de perto no tema

e de parte na poesia

para manter o poema

dentro da ordem do dia.

Aristóteles, visita

da casa da minha avó,

não acharia esquisita

esta forma de estar só.

Ele sabia que o poeta

depois de tudo inventado

depois de tudo previsto

de tudo vistoriado

teria de fazer isto

para não continuar

com que já estava acabado

teria de ser presente

não futuro antecipado

não profeta não vidente

mas aço bem temperado

cachorro ferrando o dente

na canela do passado

adaga cravando a ponta

no coração do sentido

palavra osso furando

pele de cão perseguido.

Aristóteles, visita

da casa da minha avó,

não acharia esquisita

esta forma de estar só

esta maneira de riso

que é a mais original

forma de se ter juízo

e ser poeta actual.

Aristóteles, visita

da casa da minha avó,

também diria antes só

do que mal acompanhado

antes morto emparedado

em muro de pedra e cal

aonde não entre bicho

que não seja essencial

à evasão da palavra

deste silêncio mortal.

domingo, 10 de abril de 2016

VLADIMIR HOLAN

Conheci textos deste poeta checo traduzidos excelemtemente por Eugénio de Andrade. Em Paris comprei uma antologia de poemas de Holan em francês. Daí traduzi alguns poemas alguns dos quais pedi ao Jorge Listopad que comparasse com os originais.


EXISTEM

Existem livros
que se abrem sozinhos.
A alma também faz amor. Eis o instante
Em que os mortos reencontram o que não nasceu…

Mas ao longe, lá fora,
há mais homens do que homem,
mas ao longe, lá fora,
há mais universo que Deus.

(Tradução José Fanha)

quinta-feira, 7 de abril de 2016

PIEDAD BONETT


Gosto muito e aprendo muito a traduzir poetas de outras línguas. Aqui é o caso de Piedad Bonett, Colombiana, também já traduzida por Nuno Júdice.


DO REINO DESTE MUNDO

Falo
da menina desfigurada pelo fogo
e dos seios erguidos e doces como janelas de luz,
do menino cego a quem a mãe descreve uma cor
inventando palavras,
do beijo leporino nunca dado,
das mãos que não chegaram a saber que um chuvisco é frágil
como o pescoço de um pássaro,
do idiota que olha o caixão em que será enterrado o seu pai.
Falo de Deus, perfeito como um círculo, e todo poderoso e
justo e sábio.

(Tradução de José Fanha)

segunda-feira, 4 de abril de 2016

MANUAL DE DESPEDIDA PARA MULHERES SENSÍVEIS



É importante passar palavra. No último livro de Filipa Leal mora a poesia. Se lerem alhguma opinião assim-assim nalgum jornal, não liguem. Os jornais trazem muitas vezes opiniões à toa. Ocupam o espaço assim-assim ou pior ainda.
Por isso vos digo:
peguem neste livro intitulado "VEM À QUINTA-FEIRA" e leiam-no. Fala de pessoas, fala do amor, fala da da separação, fala da distãncia, fala do pai e da mãe, fala de um país. É poesia viva. Não se esqueçam: leiam este livro.


Ser digna na partida, na despedida, dizer adeus com jeito,
não chorar para não enfraquecer o emigrante,
mesmo que o emigrante seja o nosso irmão mais novo,
dobrar-lhe as camisas, limpar-lhe as sapatilhas
com um pano húmido, ajudá-lo a pesar a mala que não pode levar mais de vinte quilos
(quanto pesará o coração dele? E o meu?)
três pares de sapatos, um jogo de lençóis, o corta-vento,
oferecer-lhe a medalha que a Mãe usava sempre que partia
e que talvez não tenha usado quando partiu para sempre,
ter passado o dia à procura da medalha pela casa toda
(ninguém sai mais daqui sem a medalha, ninguém sai mais daqui),
pensar que a data escolhida para partir é a da morte da Mãe,
pensar que a Mãe não está comigo para lhe dobrar as camisas
e mesmo assim não chorar, nunca chorar,
mesmo que o Pai esteja a chorar, mesmo que estejam todos a chorar.
tomar umas merdas, se for preciso:uns calmantes, uns relaxantes,
uns anti-oxidantes para não chorar; andar a pé para não chorar,
apanhar sol para não chorar, jantar fora para não chorar,
conhecer gente,
mas gente animada, pintar o cabelo e esconder as brancas,
que os grisalhos são mais chorões. dizer graças para não por também
os amigos a chorar, os amigos gostam de nós é a rir, ver
séries cómicas
até cair, acordar mais cedo para lhe fazer torradas antes da viagem,
com manteiga, com doce de mirtilo, com tudo o que houver
no frigorífico,
e não pensar que nunca mais seremos pequenos outra vez,
cheios de Mãe e de Pai no quarto ao lado,
cheios de emprego no quarto ao lado, quando ainda existia Portugal.

É tanto o que se pede a um ser humano no século vinte e um
Que morra de medo e de saudade no aeroporto Francisco Sá
Carneiro.
Mas que não chore.

quinta-feira, 31 de março de 2016

VEM À QUINTA-FEIRA



Filipa Leal, poeta de cuja poesia gosto muito, acaba de publicar um novo livro. Vale a pena lê-lo. É preciso lê-lo. As suas palavras entretecem mantinhas de reflão a partir de momentos do quotidiano de uma forma tão delicada que até parece fácil escrever assim.

Mas, quando mergulhamos na sua escrita percebemos com encanto como é denso e elaborado o seu ofício de palavras.

Bem haja, minha amiga.


VEM À QUINTA -FEIRA


Vem à Quinta-feira.

É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.

Vem à Quinta-feira.

A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.

Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.

Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.

Vem à Quinta-feira.

Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.

Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.

segunda-feira, 28 de março de 2016

JOÃO DAMASCENO

Da poesia de João Damasceno (1955-2010) conhecia um poema apenas, publicado na antologia "Sião". Agora chegou-me pela mão do meu amigo António Cravo, o livro "Corpo Cru".

A sua poesia é uma pedrada que nos atinge com força inesperada. Uma voz notável e completamente ignorada e que aqui vai aparecer com frequência, por certo.




Em terra de cegos quem tem um olho é rei;
quem tem os dois é frequentemente abatido


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Afirmávamos o delírio
dissemos palavras nuas,
provocámos a crise nas onsciências assustadas

Éramos os descobridorea das auroras negras
que transportam no seie e enlouquecem os espíritos

Desdenhámos da natureza,
Perguntámos-lhe os limites

Introduzimos as dúvidas que geram crimes,
explorámos a angústia

Depois era frio:
a cabeça recolhida entre os joelhos, fitávamos a costura das calças

sexta-feira, 25 de março de 2016

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES

Conhecia muito mal a poesia de Daniel Maia-pinto Rodrigues e a ele não o conhecia de todo.

Sabia-o frequentador das muitas tertúlias de poesia do Porto (entre as quais a famosa do café Pinguim.

Conhecemo-nos na Poesia à Mesa em S. João da Madeira. E foi amizade à primeira vista. Vou desatar a conhecer melhor a sua poesia. E darei aqui nota disso.



SINGULAR TEMPO PLURAL

Em Outubro passado
saí à noite com a cunhada de um amigo
o que me pareceu sexualmente correcto.

Tratava-se o espécime de alguém bem alinhavado
o que também me pareceu sexualmente correcto.

Levei-a a jantar a um bonito restaurante
trocámos umas ideias
trocámos uns olhares
engraçámos com os pontos em comum
e tudo estava a correr bem.
Falava eu das castas e tradições
do vinho que bebíamos
quando, sentindo-lhe o bouquet
ao dar um gole em grã seigneur
o estafermo do líquido
me entrou para os pulmões, circunstância infeliz
que provocou de imediato
imponente e borrifada engasgadela
mesmo ali à frente da carinha dela
o que francamente me pareceu
sexualmente incorrecto.

Mais tarde, quando já tinha
a algum custo recuperado o élan
fui com ela dar uma volta pela linha costeira.
Durante o passeio,
disse-me que estava a gostar muito
de ouvir os Roxette
o que me pareceu sexualmente correcto.
Depois abordou a política.
explicou-me que já não era
mas que tinha sido daquele partido
que agora, por sinal, está bastante partido
no mau sentido do termo.

Foi logo a seguir que me falou do mar.
Disse-me que o mar, poucos quilómetros adiante
era lindo!
Eu estava já a afiambrar as ideias
e não tardava muito ia entrar naquela fase
em que nos armamos em carapau.
Mas naqueles poucos quilómetros
que faltavam para o sítio
onde o mar é lindo
o carro ficou sem bateria.
Ainda esgrimi, atrapalhado
um incómodo diálogo com o démarreur
mas o carro, pois sim, já dali não saiu
o que, convenhamos
foi de todo sexualmente incorrecto.

Passou-se uma semana, um mês
sucederam-se os outubros
e, talvez pelo que se passou naquela noite
mas creio que não, as nossas vidas
levaram rumos diferentes.

Através do tempo
quando levo alguém a ver
o sítio onde o mar é lindo
fico com a sensação
de que é sempre um pouco depois.

domingo, 20 de março de 2016

ANGÉLICA FREITAS


E aqui fica uma poeta brasileira invulgar, publicada em Portugal pela editora douda correria do Nuno Moura.

~

querida angélica


querida angélica não pude ir fiquei presa
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
que o zelador se desse conta já eram dez e meia

querida angélica não pude ir tive um pequeno
acidente doméstico meu cabelo se enganchou dentro
da lavadora na verdade está preso até agora estou
ditando este e-mail para minha vizinha

querida angélica não pude ir meu cachorro
morreu e depois ressuscitou e subiu aos céus
passei a tarde envolvida com os bombeiros
e as escadas magírus

querida angélica não pude ir perdi meu cartão
do banco num caixa automático fui reclamar
para o guarda que na verdade era assaltante
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia

querida angélica não pude ir meu chefe me ligou
na última hora disse que ia para o havaí
de motocicleta e eu tive que ir para o trabalho
de biquíni portanto me resfriei

querida angélica não pude ir estou num
cybercafé às margens do orinoco fui sequestrada
por um grupo terrorista por favor deposite
dez mil dólares na conta 11308-0 do citibank
agência valparaíso obrigada pago quando voltar

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

YAO FENG

Ainda outro encontro de Cabo Verde. Trata-se de um poeta chinês e professor da Universidade de Macau. Um homem encantador, com grande humor e uma poesia de excepcional qualidade.



Amsterdã


Quando cheguei de carro a Amsterdã
já era meia-noite.
A reputada cidade do sexo
tornava ambíguas as luzes da rua.
Até o rosto do dono da pensão
insinuava prazer.
Mas nada me aconteceu.
O amanhecer refletia-se no rio
e o céu, muito nublado. No Museu Van Gogh,
os girassóis quebravam os raios de sol
para ficar irmanados num vaso.
Na noite distorcida, a terra de trigo,
grávida de luar,
ondulava enlouquecida.
Do auto-retrato do pintor sombrio
retirei uma orelha, de verdade,
e voltei para a rua: todos estavam com
seus órgãos intactos e saudáveis.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

ANA PAULA TAVARES


Mais um encontro em Cabo Verde. Um encontro caloroso com uma poeta angolana de grande qualidade.



ANA PAULA TAVARES (1952)

O cercado

De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado




A mãe e a irmã


A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

LUÍS CARLOS PATRAQUIM


Regresso ao Blog com a necessidade crescente de falar dos meus amigos poetas.

Estive em Cabo Verde, no VI Encontro de Escritores da Lusofonia organizado pela UCCLA. E trago notícias, notícias sérias, notícias importantes, notícias poemas.

E começo pelo meu m,uito querido amigo LUÍS CARLOS PATRAQUIM, poeta Moçambicano a viver de momento na "Ilha" de Stº António dos Cavaleiros.


LUÍS CARLOS PATRAQUIM (1953)


MUHÍPITI


E onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como máos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. E onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
E onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
E onde me confunde de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. E onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA



Affonso Romano de Santa'Anna é um excelente poeta brasileiro e autor de literatura para a infância.

Vai estar no 2º ENCONTRO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DA LUSOFONIA, de 22 a 27 de Fevereiro na Fundação O Século, antiga Colónia Balnear de O Século em S. Pedro do Estoril.

CHEGANDO EM CASA


Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia:

- hoje 22 de agosto de 1994
meu marido perdeu, deste terraço:

mais um pôr de sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI


A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.