quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

TU DORMES

Não serão muitos os poemas em que Sophia de Mello Breyner Andersen traz a intimidade dos afectos para a mesa da poesia.

A sua poesia visita mais os terrenos dos mitos e da polis. Brilha nela uma altivez, um limpeza das palavras que nunca se perde mesmo quando raramente se aproxima de temas mais pessoais e reservados.


TU DORMES


Tu dormes embalado nos rochedos
E aos meus ouvidos vem falar o vento.
Escuto, busco, chamo e não respondes,
E todo o mundo se tornou fantasma.

Estou fechada, suspensa, prisioneira
Queria voltar para fora, para o dia
Ressurgir, respirar, tornar a ver,
Mas todo o mundo se tornou fantasma.

E a voz do mar encheu o céu e a terra
Uma voz que está cheia e que se quebra
E nunca mais acaba.

Pássaros brancos cortam as janelas,
Anémonas cintilam nos rochedos:
Terror de estar sozinha e de escutar
Com este tempo morto entre os meus dedos.

domingo, 28 de dezembro de 2014

A NOSSA CASA

Na poesia moderna, e depois de um século XIX em que a poesia feminina pouco ou nada se tornou pública, foi Florbela a primeira poetisa a falar da mulher por inteiro, do amor, do desejo, do corpo.

Seguiram-se-lhe outras. As mais conhecidas são Natália e Maria Teresa Horta. Mas é ela que rompe a situação de marginalidade das vozes femininas, sofrendo na pele as dores dessa mesma marginalidade a que estava condenada a condição e a escrita das mulheres.



FLORBELA ESPANCA (1894-1930)


A NOSSA CASA


A nossa casa. Amor, a nossa casa!
Onde está ela. Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela. Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro – tão bom – dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

NATAL



Três momentos em volta do Natal e da Fé.

MÁRIO CASTRIM


DLIM-DLIM

Nasce a menina
dlim-dlim
não é Jesus
dlim-dlim
nem Jesuíina
dlim-dlim
ela é a filha
de uma vizinha
não teve burro
nem vaquinha
porque em Lisboa
era difícil
ser assim.

De qualquer modo
dlim-dlim.




FERNANDO PESSOA


NATAL


Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.




FREI BENTO DOMINGUES

"Creio que a linguagem religiosa só pode viver no símbolo e na metáfora. Naquilo que é inizível."


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

COMO ESTÁ SERENO O CÉU

Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, Condessa de Oeynhausen, Marquesa de Alorna, fundadora da maçonaria feminina, foi uma das maiores ou talvez a maior figura feminina da cultura portuguesa.

Aristocrata de vastos pergaminhos, poetisa, pensadora, frequentadora da melhor e mais culta sociedade europeia do iluminismo.


MARQUESA DE ALORNA (1750-1839)


Como está sereno o Céu,
como sobe mansamente
a lua resplandecente,
e esclarece este jardim!

Os ventos adormeceram;
das frescas águas do rio
interrompe o murmúrio
de longe o som de um clarim.

Acordam minhas ideias,
que abrangem a Natureza,
e esta nocturna beleza
vem meu estro incendiar.

Mas se à lira lanço a mão,
apagadas esperanças
me apontam cruéis lembranças,
e choro em vez de cantar.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

COMO O QUE CONSOME ALENTA

Outra religiosa nascida já em finais do séc XVII, Soror Madalena da Glória, uma das 3 grandes poetisas do séc. XVII com Soror Violante do Céu e Soror Maria do Céu.

Soror Madalena da Glória era também pintora, o que levou Natália Correia a acentuar que a pintura, bastante cultivada neste período por mulheres artistas, hoje ignoradas, teve o seu expoente feminino em Josefa de Óbidos.


(Pintura de Josefa de Óbidos)

SOROR MADALENA DA GLÓRIA (1672- data da morte desconhecida)


MOTE E GLOSA



Como dá vida o que mata,
Como o que consome, alenta.

Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:
Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Que em lágrimas persuade,
Como dá vida o que mata.

Nesta aflição importuna,
Em que meu coração passa,
Tudo é rigor que trespassa,
Nada golpe que desuna:
Que infausta a minha fortuna
Um bem, que me representa,
Cruel da vista me ausenta,
E não sabe a minha dor
Definir em tal rigor
Como o que consome, alenta.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

ANTES QUE O VOSSO AMOR MEU PEITO VENÇA

Vale a pena visitar a poesia portuguesa no feminino.

De entre todas as poetisas, a primeira será por certo Soror Violante do CéU professou a 29 de Agosto de 1630 no Convento de Nossa Senhora da Rosa, em Lisboa, convento de monjas da Ordem dos Pregadores, ali vindo a falecer.

Conhecida pelos meios culturais da época como Décima Musa e Fénix dos Engenhos Lusitanos, foi um dos máximos expoentes da poesia barroca portuguesa.




SOROR VIOLANTE DO CÉU (1601 – 1693)




Será brando o rigor, firme a mudança,
Humilde a presunção, vária a firmeza,
Fraco o valor, cobarde a fortaleza,
Triste o prazer, discreta a confiança;

Terá a ingratidão firme lembrança,
Será rude o saber, sábia a rudeza,
Lhana a ficção, sofística a lhaneza,
Áspero o amor, benigna a esquivança;

Será merecimento a indignidade,
Defeito a perfeição, culpa a defensa,
Intrépito o temor, dura a piedade,

Delito a obrigação, favor a ofensa,
Verdadeira a traição, falsa a verdade,
Antes que vosso amor meu peito vença.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

QUAL A COR DA LIBERDADE


E a propósito de Abril...


JORGE DE SENA

CANTIGA DE ABRIL



Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade»
J. de S.


Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz do cemitério
toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde e vermelha.

Esse ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

MANHÃ INICIAL E LíMPIDA


Ainda do 40xABRIL, um poema de Fernando Luís Sampaio e uma ilustração de Luís Manuel Gaspar.


FERNANDO LUÍS SAMPAIO

CODA

Da manhã inicial e límpida
Homens de palha destronaram
A chama a favor da combustão
E as palavras de que nascemos
Ladram em matilha silenciosa.

domingo, 7 de dezembro de 2014

40XABRIL


Neste mundo literário à portuguesa, onde reinam pequenos príncipes com balcão de secos e molhados nas páginas pouco literárias dos jornais, se alguém diz muito bem de alguém, vai-se logo pensar aquele role das suspeitas rascas do costume e que, infelizmente, quase sempre, são verdadeiras.

Mal conheço a Catarina Nunes de Almeida. Mas gosto da sua poesia. Gosto cada vez mais. Vai crescendo a cada publicação. Neste excelente livro editado pela ABYSMO, brilha entre vários outros excelentes trabalhos de poetas e ilustradores que, ouvindo a música de José Mário Branco, celebraram os 40 anos do 25 de ABRIL longe e para a frente e para cima dos discursos oficiais.


E se eu não dissesse nada
não me atrevesse mais a escrever
ignorasse todas as tâmaras do mundo os pontos de fuga
nos grandes quadros renascentistas
mais a poluição que ainda vai no adro
e toda a gama de tectos falsos e de capachinhos
disponível na internet?

E se eu fechasse os olhos e o útero e a conta bancária
a todo o anjo que viesse com anunciações
e tarifários ilimitados?

E se eu partisse o antebraço e nunca mais erguesse cartazes
nem cravos nem percorresse a selva que resta com o meu filho
ao colo?
E se eu me recusasse a proferir para sempre uma ave que fosse
uma das que dividem o tempo
uma entre as que salvam?

Ainda assim temo bem
a palavra cegonha romperia a minha mão
em pleno Abril


sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

UMA MENINA TINHA UM CÃO QUE TINHA UMA PULGA




Entre os poetas surrealistas, às vezes tão mal conhecidos, podemos encontrar momentos verdadeiramente gloriosos em que a escrita pões a vida ao contrário, ou seja, como ela devia ser.

ANTÓNIO JOSÉ FORTE (1931-1988)

A PULGUINHA DANÇARINA

Uma menina tinha um cão que tinha
uma pulga no focinho.
O nome da menina era Gisela.
O cão chamava-se Piloto.
Só a pulguinha
não tinha
um nome
que fosse pequenino como ela.

Quando a menina cantava
e o cão Piloto ladrava
a pulguinha
que havia de fazer ela?
Como não cantava nem ladrava
a pulguinha
dava pulos e dançava
apesar de pequenina
lhe puseram
o nome de dançarina.


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

POSTERIDADES


A Ana Luísa é uma poetisa de grande consistência na escrita e de olhar subtil sobre o mundo que nos cerca.

ANA LUÍSA AMARAL (1956)

POSTERIDADES


Escrevo para a posteridade
do que é nada:
uma lupa tombada
sobre o corpo,
uma almofada lisa,
pequeno pára-quedas
de ternura

[Devia estar amarrotada,
a almofada,
mas não está: está lisa.
Se não, ficaria espraiada
por futuro]

Escrevo para o meu filho
que é de nada,
varão que não possuo:
uma filha com olhos
de transparência tal
de pára-quedas
que um nó de vento
os tornaria muros

[Devia ter mil nós
o pé
da minha filha,
mas não tem: é livre.
Por isso é que é
de tudo]

E em relação
à lupa,
façam os entendidos
o que quer:
um século daqui,
descubram-lhe a
verdade.

[Ponha-se aí a rima
que quiser:
coberta de veludo]

domingo, 30 de novembro de 2014

DORES




Alexandre O'Neill é um bom remédio para qualquer doença.


ALEXANDRE O’NEILL (1924-1986)

DORES

Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais.

In No Reino da Dinamarca, 1958

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

MORRI MIL VEZES



VALTER HUGO MÃE (1971)


o super homem


vesti o meu fato de
super homem por baixo da
roupa de todos os dias quando
fui ouvir o que o médico
tinha para dizer sobre a
operação da minha
mãe. eu morri mil vezes
quando a operaram, iam
partir-lhe o osso do peito e
isso é tão avesso ao que
espero dela. até digo às
crianças que não corram em seu
redor, tem quase setenta anos e
está cansada e não é bom que caia ou
sequer se aflija. partiram-lhe o
osso do peito. fizeram-no porque
é assim que se faz, dizem, e eu,
secretamente com o meu fato de
super homem, supostamente
preparado para tudo, morri mil vezes
e, mesmo depois das boas palavras do
médico, ando lento, tão atrasado
nas ressurreições


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

VENHA DOUTOR ENSINAR-ME


Três poetas se seguem e três poemas sobre doença.






ROSA ALICE BRANCO (1950)

IMAGERIE CEREBRAL


Venha doutor ensinar-me a distinguir
a emoção do sentimento. Guie-me para que a mente
se torne clara, o espírito lúcido e a alma
- ah, talvez possamos dispensar a alma.
Enquanto espero ficarei escondida no armário
entre a roupa de verão e a de inverno
terei calor de um lado, termerei do outro,
mas no centro o coração estará a boa temperatura,
a uma tépida esperança. Porém se demorar a imobilidade
mudará as estações da roupa, as fases da lua. Esta atracção
por si é uma maré viva, uma maré cega se não vier
ensinar-me o que é a emoção e o sentimento. Faremos
uma ressonância antes do chá, uma sonda perfurando
o insondável. Venha doutor dizer-me se sinto fome, se
tenho sede, ou se não passo de uma ilusão dos sentidos.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

APETECE SER AVE

Foi um privilégio para quem o pôde ver no seu programa "Se bem me lembro" na RTP dos anos 60, ou assistiu às suas aulas na Faculdade de Letras.

Sendo um poeta complexo, com uma música muita própria, por vezes pousava na grande simplicidade e dava-nos pequenas pérolas como esta.



VITORINO NEMÉSIO (1901-1978)


O sol fechou o dia
Sem mão nem chave;
A pouca luz que havia
Deu-a para uma ave.

Então a ave selou
Com seu sono seu ninho,
E a terra toda amou
Na casa do passarinho.


Um ovo é como uma chave,
Mas só abre a vida às penas.
Apetece ser ave,
Ter as mágoas pequenas.

domingo, 16 de novembro de 2014

ENCANTA-ME

O Abel Neves é um amigo, companheiro de ofício(s), dramaturgo, romancista e poeta. Segundo diz a música da poesia está presente em tudo o que escreve.

Este poema diz exactamente o que eu gostaria de dizer tantas vezes a algumas, não sei se muitas, pessoas.


ABEL NEVES (1956)


Faz o favor encanta-me
olha como faz Marte aos engenheiros
e está a tantos milhões de distância

Não te peço órbitas ao largo nem que venhas
mapear a casa um perfume que seja teu
só isso
e encanta-me

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

AMOR BIG AMOR



FERNANDO ASSIS PACHECO (1937-1995)


Amor amor big amor
eu dizia shazam e tu não me ligavas

pus Mandrake a seguir-te hábil nos truques
e tu não me ligavas

em qualquer planeta verde e avançadíssimo
tu não me ligavas

estendi o meu braço Homem de Borracha até S. Martinho do Bispo
e tu não me ligavas ponta nenhuma

tu querias era casar na Sé Nova
branquingénua abusar do meu livre alvedrio

fiz-te pois um manguito do tamanho dum choupo
e cá estou pai de filhos um bocado estragado

mas não por tua causa que já não existes
ó sombra de sombra à esquina da farmácia


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

NÃO EMPURREM, IRMÃOS!


Um dos mais irónicos e divertidos poemas do Zé Gomes Ferreira.



LÉCTRICO

XLII



E se eu de súbito gritasse
nesta voz de lágrimas sem face!:

Eh! companheiros da plataforma
presos ao apagar do mesmo pavio!
Porque não nos amamos uns aos outros
e damos as mãos
- sim as nossas mãos
onde apodrecem aranhas de bafio?

Eh! companheiros da plataforma!
(Não empurrem Irmãos.)


sábado, 8 de novembro de 2014

VAGAS E LUMES

O livro saiu na semana passada. E é para ler e chorar por mais.

O meu muito amigo e companheiro de nuvens e sonhos, Mia Couto, feiticeiro das palavras, mostra-se cada vez mais poeta, apesar de não deixar de ser um maravilhoso contador de histórias.

Falávamos há uns dias. Perante este mundo estranho que não sabemos para onde vai e onde muitos dos nossos sonhos de humanidade parecem demasiado adiados, afogados no "tem que ser" das economias, o que nos resta a nós se não SER, apenas SER, continuar a SER, com o mesmo olhar em fogo e água e as mãos a moldar o barro das palavras para as oferecer a quem delas mais precisa?



ERRATA

Quem é mortal, mente.

Mentirosos,
ainda mais,
os tais
imortais.

Sem culpa uns e outros.

O verbo morrer
é que é sujeito falso
e de duvidosa acção.

Mais verdadeiro seria
se não fosse verbo.

Ou se conjugasse apenas
em forma passiva: ser morrido.

Como eu,
mais que as vezes que nasci,
fui morrido por ti.

E, assim, findo
num engano de rio:
simulando que morre
mas sendo água eterna.


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

TEJO


Passei à beira Tejo. Há muito que não nos encontrávamos. Ficámos à conversa. Pouco tempo que esta vida que levamos não nos deixa parar muito.

Mas logo me veio à cabeça o O'Neill. O primeiro poeta das minhas leituras de adolescente. E que me ficou para sempre. Cheguei a saber a obra dele quase toda de cor. Da cuore. Do coração.



O Tejo Corre no Tejo


Tu que passas por mim tão indiferente,
no teu correr vazio de sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!

Por isso, à tua beira se demora
aquele a saudade ainda trespassa,
repetindo a lição, que não decora,
de ser, aqui e agora,
só um homem a olhar para o que passa.

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!

Um voo desferido é uma gaivota,
não é um voo da imaginação;
gritos não são agoiros, são a lota…
Vá, não faças batota,
deixa ficar as coisas onde estão…

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!

Tejo desta canção, que o teu correr
não seja o meu pretexto de saudade.
Saudade tenho, sim, mas de perder,
sem as poder deter,
as águas vivas da realidade!

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!


sexta-feira, 31 de outubro de 2014

CANTIGA DE MÃE



A obra da Alice está cheia de pequenas e grandes coisas deliciosas Este divertido poeminha é uma delas. Adoro dizê-lo nas escolas. As palavras e a poesia servem também para brincar. E, quando são bem entretecidas, como é o caso, tornam-se numa festa

CANTIGA DE MÃE

Olha as horas!
Sai da cama!
Não demores
a acordar!
Lava os dentes
muito bem.
- Mas… ó mãe!…

Não inventes
mais desculpas
p’ra atrasar!
Passa o pente
na cabeça!
Bebe o leite
mais depressa!
E não te esqueças
também..
- Mas… ó mãe!…

…de levar
a papelada
assinada
que a professora
mandou.
Vai lá buscar
a mochila
e vê, se por esta vez,
estão prontos
os TPC!
E fecha bem…
- Mas… ó mãe!…
A torneira
da banheira!
Olha o pingo…

- Mas ó mãe!...
Mas ó mãe!...
Hoje é domingo!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

PINGA O PINGO



PINGA O PINGO

E cá vou andando eu a brincar com a música das palavras.

Pinga o pingo da torneira
Pinga pinga
Pinga o pingo
Que amanhã já é domingo
E depois segunda feira
Pinga o pingo da torneira
na banheira
terça feira
quarta feira
Pinga de toda a maneira
quinta feira
sexta feira
Falta pouco p’ra domingo
Pinga o pingo
Pinga pinga
Pingo o pingo da torneira.


sábado, 25 de outubro de 2014

CANTILENA


Os menos jovens lembrar-se-ão deste poema cantado pelo Xico Fanhais.

Talvez nem todos saibam que o poema foi escrito por Sebastião da Gama, professor e poeta de rara sensibilidade e delicadeza, falecido demasiado jovem.


CANTILENA

Cortaram as asas
ao rouxinol.
Rouxinol sem asas
não pode voar.

Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.

Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol!,
ta queira roubar.
Rouxinol sem noite
não pode viver.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

PORTUGAL



Num tempo de feroz ditadura da economia, dos mercados, dos bancos e de tudo o mais que nos encharca pesarosamente o quotidiano, é bom relembrar aos nossos filhos de onde viemos e para onde improvavelmente vamos.

PORTUGAL

O teu destino é nunca haver chegada
O teu destino é outra Índia e outro mar
E a nova nau lusíada apontada
A um país
que só há no verbo achar.


domingo, 19 de outubro de 2014

UM BURRINHO MEU AMIGO


Escrever para crianças implica deixar sair cá para fora a criança que nunca deixou de nos habitar. Quem não trouxer consigo esse espanto da vida, essa alegria, essa vontade de tornar as palavras numa festa, como o Vírgílio Alberto Vieira, é melhor escolher outro caminho.

HISTÓRIA DE UM CHAPÉU

Tinha um chapéu tirolês
Feito com palha de trigo
Por distracção outra vez
Comeu-o com avidez
Um burrinho meu amigo


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O SENHOR MAR




A poesia da Matilde Rosa Araújo para crianças era de uma raríssima e muito delicada singeleza. Há muita gent que tnta escrever para crianças usando muitos "inhos", muitos "carinhos", muitos "passarinhos", mas poucos são os que conseguem essa qualidade das palavras quase cristalinas que saÍam da pena da Matilde.



HISTÓRIA DO SENHOR DO MAR

Deixa contar…
Era uma vez
O Senhor do Mar
Com muita onda…
Com muita onda…

E depois?
E depois…
Ondinha vai…
Ondinha vem…
Ondinha vai…
Ondinha vem…
E depois…

A menina adormeceu
Nos braços da sua mãe…

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

AS MÃOS DA MINHA MÃE


O meu amigo Hugo Santos é um poeta com um trabalho comovente mas pouco divulgado. Publicou há tempo este livrinho. Poesia para menino com uma crta toada alentejana em fundo.

AS MÃOS DA MINHA MÃE

Pelas mãos de minha Mãe passam todos os rios da casa.
É aí que os pássaros vêm beber.
Voam à volta da sua cabeça, aninham-se no seu colo
e cantam.

- Vem – diz minha Mãe.
E eu sinto que os rios começam a passar
das suas para as minhas mãos
e aí começam a matar a sede todos os pássaros
da terra.

sábado, 11 de outubro de 2014

RIMA BUZINA


Um dia, quando a Matilde Rosa Araújo, avançada na idade, andava já de bengala, o António Torrado disse-lhe referindo-se aos escritores de literatura infanto-juvenil "A Matilde é a nossa decana!"

E a Matilde, com o seu sorriso de menina marota, respondeu-lhe "De cana não, filho. De bengala!"

Não há dúvida de que um dos elementos fundamentais da escrita para crianças é o prazer em brincar com palavras.

E o António, que é agora o nosso decano, mas sem bengala, é daqueles que sabem brincar como poucos com palavras.

ANÚNCIO – II

Troco uma dor no peito
por uma dor no braço.

Negócio feito,
disse o braço ao peito.
Mas como era uma dor de respeito
o braço pôs um anúncio a dizer:

TROCO A DOR NO BRAÇO
POR OUTRA QUALQUER
INCLUSIVAMENTE DE BARRIGA.

Mas ninguém foi na cantiga.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

OS ANOS QUE FAZEMOS TAMBÉM NOS FAZEM



O Álvaro Magalhães está entre os que melhor escrevem para crianças jovens, entre aqueles que fazem literatura, mesmo literatura, para os mais jovens.


ANIVERSÁRIOS


7.

Os anos que fazemos
também nos fazem a nós.
Os anos que fizemos nos fizeram.
Os anos que faremos nos farão.
É de anos que somos feitos,
de breve e misterioso tempo.
Em nós estão os anos que já fomos .
Esses anos, que fizemos, somos nós,
do cimo da cabeça à ponta dos pés.
Quanto tempo somos?
Quantos anos és?

De que é feito o tempo que nos faz?
Quanto tempo há?
Para onde vai o tempo que já foi?
Onde está o tempo que virá?



segunda-feira, 6 de outubro de 2014

DA CIÊNCIA DE VOAR



Eduardo White, poeta moçambicano, embora com várias obras publicadas em Portugal, é daqueles poetas só referidos pelos "iniciados. Quer dizer, pelos que andam sempre à procura de vozes verdadeiramente comunicantes. Esta era uma delas Foi-se embora cedo de mais há cerca de mês meio.



Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro.