sábado, 29 de setembro de 2007

OS MEUS AMIGOS MARCADORES

Ler inclui um vasto conjunto de práticas que variam de época para época, de local para local, de pessoa para pessoa.

Cada um lê de uma maneira própria…
No meio da sala, num cantinho escondido, numa mesa de café, no autocarro, na biblioteca, na cama.
Mas também…
Junto à lareira no Inverno, no meio da verdura inebriante de um jardim na primavera, no fresco da brisa nocturna no Verão.
Ou ainda…
De pé, sentado, de pernas para o ar, deitado.
Porventura…
De dia, de tarde de noite.
Por vezes…
A tomar chá ou café, a beber uma cerveja, a comer amendoins.
Eventualmente…
Vestido de fato e gravata, de fato de treino, de calções, de pijama.
Alguns…
Com um lápis ruído na mão ou a torcer e retorcer uma ponta de cabelo.

Todos nós temos os nossos rituais de leitura e os nossos auxiliares. De entre os muitos auxiliares de leitura possíveis gosto de nomear o marcador.

Há quem o use apenas para cumprir uma função: marcar a página em que se parou a leitura sem ter que a dobrar ou danificar.

Mas o marcador traz consigo uma mensagem. É colorido ou sombrio. Reproduz uma obra de arte. Traz um desenho. Fala por vezes de outro livro.

O marcador é um amigo, uma espécie de mediador entre nós, o livro que lemos e o próprio acto de leitura. O marcador acaba por falar connosco, acrescentando um “ruído” de fundo aquele maravilhoso acto de ler em solidão.

Adoro marcadores. São amigos que não dispenso neste vício bom que é ler. Como quem escolhe a gravata que fique bem com uma determinada camisa, ou uma camisa que fique bem com um determinado fato, escolho cuidadosamente para cada livro que vou ler, o marcador que “lhe vai bem”.

Tenho a certeza de que o mundo fica mais feliz quando procuramos equilíbrio entre as coisas. Por isso, a escolha de uma coisa tão simples como um marcador pode ser um acto arbitrário uma atitude estética e ética como, no fundo, são todas as escolhas.



terça-feira, 25 de setembro de 2007

POESIA E FAVAS

Nem tudo na educação tem de ser subjugado à ideia de prazer.

O prazer de que se fala é, geralmente, solipsista e, pior, absolutamente superficial. Se o livro é muito grande e se esse facto prenuncia uma falta de prazer, dá-se a ler apenas um resumo. Se o resumo também está longe da ideia de prazer dá-se um resumo do resumo. Se mesmo assim, o jovem não encontra prazer naquelas 10 linhas escorridas, dá-se-lhe um CD interactivo e, como é necessário cumprir o programa, acaba-se a enviar os meninos para a investigação na net, ou seja, copy and paste, copiar , colar e imprimir.

Através de sucessivas reformas tão cheias de pântanos pedagógicos como de inutilíssimas acções de formação e regulamentos cada vez mais policiais, muitos dos nossos professores têm vindo a ser transformados em funcionários públicos, bem intencionados em muitos casos, mas ronceiros e cada vez mais incapazes de acender a paixão do saber nos seus alunos.

Muitos de nós aprendemos tarde, para lá da infância ou até da juventude, a gostar de algum daqueles pratos de sabor mais complexo da nossa culinária. No meu caso foram as favas. Não as aceitei bem quando as abordei das primeiras vezes. Não é fácil gostar de umas favas guisadas com toda aquela arquitectura de sabores que as torna num prato de excepcional qualidade.

Levou tempo até que, pela mão do meu pai, aprendi a gostar de favas e apercebi-me de que tinha acedido a um espaço de prazer requintado.

Hoje estou certo de que os grandes prazeres exigem grandes trabalhos, trabalhos penosos que terminam em palácios de excepcional beleza e superior prazer.

Ler a “Guerra e paz” de Tolstoi, os poemas de Rilke, de Celan, ou os Haikai de Bashô, a Divina Comédia de Dante ou os “Lusíadas” são aventuras que exigem uma disponibilidade e, talvez, um esforço significativo. Mas no final, e até muito antes do final, que luxuoso prazer!

Não tenho dúvida em afirmar que a sabedoria implica paixão e o apelo a um prazer que não se resume ao efémero do momento mas vai muito para além dele.

Encontrar um poeta que não conhecíamos e que nos abre uma porta para novas formas de nos relacionarmos com o mundo é um prazer de raríssima intensidade.

Aconteceu-me ficar em estado de completa euforia quando entrei pela obra do mexicano Octávio Paz, dos polacos Milosz e Szymborska, do francês René Char, entre outros. Mas não foi fácil porque são escritores de outros universos culturais, com experiências históricas diferentes, com ritmos e respirações poéticas que é necessário aprender a ouvir.

Depois, quando já caminhava pelas sendas por vezes intrincadas de alguns destes poetas, mal passei ao estado de paixão, tive de falar deles aos meus amigos, quase que obrigar as pessoas à minha volta a lê-los e a ouvi-los.

Acender a paixão pelo saber nos seus alunos implica que o professor viva ele próprio apaixonado pela leitura, pelas artes plásticas, pela ciência, pelo teatro, pelo cinema, pela música, pelo melhor que a vida tem para nos oferecer.

No entanto, a palavra paixão não faz parte do oficio, em geral canhestro e básico, de um gestor e, hoje em dia, muitos professores arriscam-se a afastar-se cada vez mais do saber, não passando de meros gestores da aquisição de saberes descartáveis.

Vem isto a propósito do trabalho com crianças à volta da poesia. Muitas vezes, nas nossas escolas, cai-se num equívoco perigoso que é o que confundir poesia com rima e com uso e abuso do lugar comum mais ou menos bem intencionado.

A poesia está muito para além disso. Situa-se num espaço de relação sempre nova e sempre arriscada com a palavra. Talvez não seja difícil trabalhar poesia com crianças. Mas é certamente violento, porque esse trabalho sai fora das boas intençõezinhas e do pequenino bom senso. A palavra poética rasga o mundo, vai ao fundo inquieta e exalta.

Não conheço muitas experiências de verdadeiro mergulho na alma da poesia com crianças. Esse mergulho é lento e exige um trabalho continuado sobre essa matéria complexa que é feita de afectos e emoções.

Há muitos anos a minha querida amiga Maria Rosa Colaço publicou “A criança e a vida”, um livro maravilhoso de poesia, poesia verdadeira, grande poesia escrita pelos meninos pobres da sua sala de aula de uma escola primária. Vai na 43ª edição. O primeiro poema do livro, escrito por um menino de 9 anos fala assim do amor.

O amor
é um pássaro verde
num campo azul
no alto da madrugada

Vítor Barroca Moreira
9 anos

Neste último ano estive ligado a duas experiências de trabalho sobre poesia em duas escolas do 1º ciclo. Apesar de breve, a experiência foi muito rica. Deixo aqui dois poemas e uma pequena homenagem às professoras que agarraram essa experiência, esperando que tenham a possibilidade de a continuar. Não sei se os meninos que passaram por este trabalho virão a ser poetas. No entanto, é muito provável que venham a ser leitores de poesia e pessoas um pouco mais capazes de dialogar com as suas emoções.

Quando estou triste
as nuvens tapam o sol dentro de mim
e as paredes apertam-me
e os meus olhos deitam um mar de escuridão.

Mas de repente
o sol regressa
e os seus raios abraçam-me
e os pássaros cantam à minha volta.

Susana, Inês, Rafael,

Escola do 1º Ciclo da Venda do Pinheiro
Professora Susana Lopes


Eu sou um pássaro
chamado Noite.
Eu sou um pássaro a voar
no meio das cinzas pretas e secas
de um rosto imundo.
Ou uma tesoura a cortar
um lápis preto.

João Marreiros

Escola do 1º Ciclo da Av. Heróis do Ultramar, Évora
Professora Rita Carrapato

(Texto publicado no nº 5 da revista Perspectiva, Setembro/07)

POEMAS PARA UM DIA FELIZ

Grandes serão alguns dos poetas cuja escrita nasce do lado nocturno da vida. Não o vamos negar. Como também não podemos esquecer os outros, que exercem a sua arte com alegria espalhada pela vida e pelo verbo, inscrevendo-se do lado do sol, do amor realizado, da paixão pelos primores da natureza.

Desde o início dos tempos que a poesia está presente onde estiver o Homem com as suas ansiedades e inquietações, as suas dúvidas, o seu júbilo de criatura capaz de gozar com êxtase o desvario do coração, a frescura da terra, a deslumbrante imensidão do universo.

Também na poesia portuguesa temos casos extraordinários de poesia feliz. Ou melhor, de poesia escrita em estado de felicidade.

Foi assim a proposta que me pus: juntar alguns poemas que nos ajudem a viver ou a tornar um dia, um único dia mais feliz.

“Poemas para um dia feliz” é o terceiro volume de uma série em que ao livro se junta um CD de Áudio com a declamação dos poemas. Porque é certo que muita poesia se apreende melhor pela música da voz e foi encostados a uma voz que muitos de nós descobrimos a festa da poesia

TRÊS POEMAS PARA UM DIA FELIZ

ANTÓNIO BOTTO


Afirmam que a vida é breve
Engano – a vida é comprida:
Cabe nela amor eterno
E ainda sobeja vida.


RUY BELO


E TUDO ERA POSSÍVEL

Na minha juventude antes de ter saído
de casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder de uma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer



JOSÉ FANHA


Primeiro poema para a Matilde

Planta uma rosa branca.
Não chores
se um Outono provisório vier
dispersar as pétalas
ou se a terra as dissolver
no seu labor milenar.

Muitos anos depois
numa rua improvável
alguém há-de sorrir-te
com olhos de Primavera
e dentes brancos
como as pétalas
da rosa que um dia
soltaste ao vento.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

QUERIDAS BIBLIOTECAS

Cada vez mais as Bibliotecas fazem parte da minha vida.

Gosto de livros. Melhor, gosto de ler. Gosto tanto de ler que não sou capaz de passar um dia sem ler pelo menos uma história, uma página de um romance, um poema, qualquer coisa.

Gosto muito de ler para mim em silêncio e de ler em voz alta. De ler para os outros e de partilhar com todos as viagens, as aventuras, as emoções que a leitura me traz.

Gosto de passear pelas bibliotecas e reencontrar esses velhos amigos que são os livros já lidos. Olha “Os Três Mosqueteiros”! E “O velho que lia romances de amor”! E “O Principezinho”! E “As aventuras de João Sem Medo”!

Também gosto de conhecer novos livros. Deixam água a boca e uma vontade enorme de pegar neles e desatar a lê-los.

Adoro as Bibliotecas. Mas não é só por causa dos livros. É também pelas pessoas que lá trabalham. E as que entram para ler. E as que saem com os livros emprestados debaixo do braço. E as que lá vão contar histórias. E as que escrevem essas histórias.

Também eu gosto de escrever histórias e poemas. Por isso é que vou a muitas escolas e Bibliotecas para ler os meus livros e conhecer os meus leitores. É como se fossemos todos da mesma família. Uma família que encontra um bom bocado de felicidade em volta das palavras, dos livros e das leituras.

Por tudo isto é que, cada vez mais, as Bibliotecas fazem parte da minha vida.

E agora há ainda mais uma razão para estar tão ligado às Bibliotecas. Vai inaugurar-se a terceira Biblioteca com o meu nome! Primeiro foi o Centro de Recursos da Escola EB 23 da Venda do Pinheiro, depois a Biblioteca da EB 1 nº3 do Cacém e, finalmente, inaugura-se no dia 26 de Setembro a Biblioteca José Fanha da Escola EB 1, JI do Olival Basto

Imagine-se! Três Bibliotecas! É um mundo! Não sei se mereço tanto carinho. Não sei se consigo acrescentar-lhes alguma coisa ao muito que já fazem.

Por isso criei este blog para todos, alunos e professores destas e de todas as escolas e de todas as Bibliotecas. Para partilhar as histórias e poemas que vou escrevendo, coisas malucas que ás vezes me acontecem como acontecem a toda a gente, livros e filmes de que gosto muito especialmente, e mais as memórias antigas, algumas fotografias, enfim, bocados grandes e pequenos do que tem sido a minha vida à volta de palavras e livros e leituras.