sábado, 31 de outubro de 2015

YVETTE CENTENO


Poeta elegante, serena, segura. Trabalha nos insterstícios da linguagem. Merece ser redescoberta.

O POETA ABORRECIDO


E de repente o vazio

o ennui

o aborrecimento

sem causa nem efeito

as horas não obedecem

ao ponteiro do relógio

e este,

falhado o seu destino,

entra em desgoverno

e mata-se

no fundo da gaveta



O homem sentado a ler

não sabe nada das horas

nem do relógio

e ainda menos da gaveta

e do grande desgoverno

se lhe falassem disso

diria que era treta

ele já se perdeu do tempo

do presente e do passado

o entretém são as letras

elas são o seu relógio

são as horas

e o ponteiro

são o último dos últimos

e para sempre

o primeiro


















domingo, 18 de outubro de 2015

ISABEL MEYRELLES


Artista plástica, ezcelente ceramista e poeta. Foi das poucas mulheres ligadas ao Movimento Surrealista Português. Estudou e viveu entra Paris e Lisboa.

A sua obra poética foi publicada há alguns anos pela editora Quasi.



Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
sonhar os meandros
mais secretos
do teu corpo
floresta e armadilha,
fonte e bramido

Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
entrelaçadas, adormecidas,
recriando o peito,
as espáduas, o ventre,
as coxas, o sexo,
amazônia interior

Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
por vezes um único dedo
desenha no ar
os olhos, a boca, o cabelo,
estrela negra
que só eu conheço
Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
sonhar esta travessia do espelho
de reflexos infindos
que é a minha recordação de ti.
Aliás, que outra coisa
podem elas fazer?

terça-feira, 13 de outubro de 2015

ANA HATHERLY


Foi-se embora há cerca de dois meses. E faz falta. Peloi seu espírito inovador. Experimental. Pelo seu trabalho plástico. Pela sua bela poesia.

Esta "BALADA DO PAÍS QUE DÓI" foi escrita nos anos 60. Podemos relê-lo como se tivesse sido escrito nestes últimos anos da chamada crise.



BALADA DO PAÍS QUE DÓI

O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
português vai

português sai
português dói

domingo, 4 de outubro de 2015

JOAQUIM PESSOA


Querido amigo e companheiro da poesia, da palavra partilhada, do poema na ponta da voz.


OS AMANTES COM CASA

Andavam pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Respiravam exaustos como se tivessem
nascido da terra
de dentro das sementeiras.
Beijavam-se magoados
até se magoarem mais.
Um no outro eram prisioneiros um do outro
e livres libertavam-se
para a vida e para o amor.
Vivendo a própria morte
voltavam a andar pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Então era a música, como se
cada corpo atravessasse o outro corpo
e recebesse dele nova presença, agora
serena e mais pobre mas avidamente rica
por essa pobreza.
A nudez corria-lhes pelas mãos
e chegava aonde tudo é branco e firme.
Aquele fogo de carne
era a carne do amor,
era o fogo do amor,
o fogo de arder amando-se e por toda a casa,
contra as paredes, no chão.
Se mais não pressentissem bastaria
aquela linguagem de falar tocando-se
como dormem as aves.
E os olhos gastos
por amor de olhar,
por olhar o amor.
E no chão
contra as paredes se amaram e
pela casa andavam como
se dentro das sementeiras respirassem.
Prisioneiros libertados, um
no outro eram livres
e para a vida e para o amor se beijaram
magoando-se mais, até ficarem magoados.
E uma presença rica,
agora nova e mais serena,
avidamente recebeu a música que atravessou de
um corpo a outro corpo
chegando às mãos
onde toda a nudez é branca e firme.
Com uma carne de fogo,
incarnando o amor,
incarnando o fogo,
contra o chão das paredes se amaram
pressentindo que
andando pela casa bastaria tocarem-se
para ficarem dormindo
como acordam as aves.