sexta-feira, 26 de setembro de 2008

IMAGIAS





POEMA QUE SE DEVIA

Este poema devia ser para ti, devia
falar de carrosséis ou sinos (as palavras
que aqui me conduziram e me obrigaram
à angústia).
O ponto mais pretérito da angústia
devia estar neste poema, que seria
para ti.

Nele, eu embrulharia muitas coisas:
calendários indóceis, facturas por pagar,
livros deixados por ler à mesa da cabeceira,
anúncios recortados de nuvens
ou jornais.

Acrescentando também os carrosséis, os tais
de que falava acima, e os sinos
que todavia teimam em tocar a horas renitentes.
Tudo isto eu deveria dizer
Neste poema: ternuras por pensar e muitas dívidas
impensáveis e doces.

Usaria então breve vocabulário sempre igual,
as mesmas palavras que há anos têm sido
as minhas metáforas idênticas
em ponto mais pretérito de angústia.

Seria então um poema que se devia
a toda a gente, especialmente a ti,
um pequeno berlinde que eu nunca soube jogar,
porque, no tempo em que vivi, o que se usava
era canções de roda e bonecas
de tranças a fingir.

Escrito no ponto mais pretérito
da angústia,
aspiraria à linguagem mais simples
das coisas menos simples,
como facturas de vida,
contas de hospital – ou ainda um abat-.jour
de impossível partilha.

Pensando bem, com um perfil assim, este poema
nem devia ser um poema, mas um grito,
ou uma voz em branco,
escrito no pretérito mais que perfeito
de tudo, a sua angústia a concordar com tempo
e modo. E os sinos reticentes
em música de fundo.


Ana Luísa Amaral

2 comentários:

Licínia Quitério disse...

Gosto de reler esta poetisa. Sinto-me em casa(se isto tiver algum sentido).

Beijinho.

Rita Carrapato disse...

poema que me tinha ficado na memória. Li-o em Cem Poemas Portugueses no Feminino. E fui encontrar mais dois noutras antologias
Um blogue é também isto: atrás de uma leitura, vem a vontade de mais uma.
Um abraço

Rita