terça-feira, 28 de outubro de 2008

MAIS DERIVAS



Vladimir Holan (1905-1980), poeta checo ntural de Praga.


Tinha lido dois ou três de poemas de Vladimir Holan traduzidos por Eugénio de Andrade.

Um dia, nos anos 80, com poucos escudos no bolso, cheguei a Paris e gastei quase tudo o que tinha em dois discos de Léo Ferré e um livro de Ferlinghetti. Ainda dava para mais um livrito. Fui espreitar as poesias.

Folheado para a frente e para trás, o escolhido foi Vladimir Holan.

Com as minhas parcas compras na mão e, na cabeça, as muitas que queria fazer e para as quais já não tinha dinheiro. Tudo géneros de primeira necessidade, poesia e música.

Saí um tudo nada humilhado e irritado da FNAC dos Halles. Ainda não havia FNAC em Portugal e eu, perante aquele espectáculo apetitoso de corredores e corredores de livros e discos, sentia-me um miserável pobretanas terceiromundista.

Ainda por cima, em Paris costumo ser alvo de atitudes racistas avulsas por me julgarem magrebino.

Resolvi vingar-me e gastar o pouco que me restava a comer e beber. E acabei essa tarde a ler Holan num pequeno e delicioso café parisiense.

Fascinado pela densidade daquela poesia e pela música que se desprendia de uma tradução francesa que soava muito bem, mergulhei na leitura e já não sei quanto tempo ali fiquei.Bebi cerveja, comi sandes de patê e li poesia até perceber que a conta já devia andar perto dos 30 francos que me restavam.

Nssa altura percebi que o café estava cheio, havia gente à espera de mesa e a empregada andava a tossir significativamente à minha volta a ver se eu me punha a andar.

E com razão...! Um magrebino a comer e beber e a ler poesia? Não faza sentido nenhum. Ela tnha muita pressa de me ver pelas costas. Paguei e tanta pressa tinha a empregada que quando voltou me trazia um pratinho cheio de notas. Hélas! Eu tinha dado 30 francos e ela trazia-me troco de 100.

Não disse nada. Guardei o dinheiro com um ar imperial, dei uma boa gorjeta, saí cheio de poesia na alma e com a carteira um pouco mais confortável e, mal virei a esquina, desatei a correr não fossem dar pelo erro na conta.

Foi assim que fiquei duplamente agradecido a Vladimir Holan; pela sua magnífica poesia e por um troco errado que me deu algum consolo numa tarde primaveril de Paris.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A LOUCA

A LOUCA


Até deus tem um ofício, nós é que não sabemos qual,
diz a louca.

É preciso colocar um pedaço de Dezembro
sobre este onde não nevou, diz a louca.

Sim, eu estou a perder a vista, mas não me venham falar
de letras grandes e pequenas,
eu vejo bem, tenho uma voz grossa,
diz a louca.

Não penses que me ponho a rir apenas
porque tenho uns belos dentes… Trata-se de uma visão vocal,
diz a louca.

Os cabelos sobre as costas da noite e a ira de uma concha
desvendarão a fineza das circunvoluções cerebrais da noz,
diz a louca.

Olha, todo este espaço preenchido pela ausência lúbrica
de um ladrão de cemitérios! Eu forço o destino docemente,
diz a louca.

Agora é que descobri que aquela minha amiga me traiu
apesar de calçar de vez em quando os meus chapéus,
diz a louca.

A camisa d forças não passa de um vestido de noiva para o registo
e outro para a igreja,
diz a louca.

Porque é que me puseram estes óculos escuros? Sem eles vejo muito bem
os impulsos cósmicos do cubismo!
Eu sou instruída!, diz a louca…

E teria dito por certo muito mais
se me tivessem dado uma pedra para me sentar
em vez de um momento de atenção,
diz esta louca…

Vladimir Holan

(Traduzido do francês por José Fanha. Revisto por Jorge Listopad)

sábado, 25 de outubro de 2008

DERIVAS E TRADUÇOES

Nas derivas por jornais, por livros e pela net vou encontrando aqui ou ali algum poema que me comove, algum poeta de quem me descubro, subitamente, irmão.

Encontrei há pouco tempo, nas páginas de um jornal, um poema do poeta granadino Luís García Montero que muito me comoveu. Pela sua claridade e limpeza, pela belíssima forma de falar dos filhos. Logo me senti da mesma família de Montero. Logo procurei traduzi-lo.

É claro que sei que traduzir poesia é uma forma de alterar o original, de o tomarmos para nós numa outra língua, numa outra música, numa outra rosa (como dizia Neruda).

Traduzir poesia é um exercício de humildade em que se procura recriar na nossa língua a voz que vem de outra paisagem sonora.

Talvez valha a pena. Espero que sim. Aqui vai com um abraço para o poeta que gostava de conhecer. Talvez um destes dias, quem sabe? Os poetas encontram-se aqui ou ali por razões mágicas e misteriosas. Ou, pelo menos, gosto de pensar que é assim.

LUÍS GARCÍA MONTERO





OS FILHOS



Por favor, não tragam ruído
à tranquilidade deste poema
escrito com a mão
do que fecha a porta ao apagar
a luz.
Os meus três filhos acabam de adormecer.
Necessito de silêncio para pensar
neles.


Cores indeléveis num lápis
de traçado infantil,
voltam a desenhar
- mas desta vez a sério –
uma árvore, uma casa, a memória
de uma luz acesa
com sabor a Dezembro,
os cristais do medo
e a ilusão do futuro
debaixo do sol dos dias…..

Um filho é o segundo país onde nas-
cemos.
Com a sua falta de idade faz-nos
repetir aniversários
e devolve-nos
ao mundo do relógio,
às chamadas telefónicas
que são uma raiz
na margem do tempo.

Um filho ensina-nos a perguntar
com voz de água
a verdade decisiva da terra.
Sermos como juncos, e em amor flexíveis,
não assegura respostas
nem confirma o repouso.

Elisa, Irene, Mauro,
cada qual com o seu porto e com a sua
chuva,
luzes cintilantes de um mesmo rio.
Ninguém revele, por favor,
que acabo de escrever-lhes um poema.
Os filhos crescem com espinhos.
Nunca sei imaginar o que podem dizer do que digo,
o que podem pensar do que
penso,
o que podem fazer com o que faço

Luís Garcia Montero

(Tradução José Fanha)

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O ENTERRO DA ESCOLA



Outro amigo com quem me vou encontrando por aqui e sobretudo por ali desde os 18 anos. Fizemos canções juntos, entrámos em espectáculos, almoçámos, jantámos, rimos muito e trocamos um imenso abraço amigo, mais que amigo, irmão, sempre que nos reencontramos.

Tudo começou em 1969. Pelo mundo ia o movimento hippy, o Make Love not war, a guerra do Vietname, os Beatles, os Stones, Woodstock, os restos do Maio de 68 em Paris. Ser jovem era sonhar. Ser diferente. Ser irreverente. Questionar. cantar. Mudar. Experimentar.

Por cá, havia a guerra colonial, 4 anos de tropa e guerra a que nós, jovens, estávamos condenados e cuja única alternativa era a fuga a salto e o exílio.

E havia o protesto estudantil que crescia a olhos vistos no cinzentismo com alguma esperança de abertura política trazidos pela doença de Salazar e chegada ao poder de Marcelo Caetano.

Em 1969 entrei para a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, ESBAL, ao Chiado, para estudar Arquitectura.

Aí conheci o Carlos Mendes, uma grande vedeta à época. Músico dos Sheiks, vencedor de dois Festivais da Canção RTP e, acima de tudo, um tipo sem peneiras, um jovem cheio de vontade de partir a loiça, de rir, de fazer de cada dia de vida uma festa. Um pouco como muitos de nós.

Quando cheguei á Escola alguns alunos, e entre ele o Carlos, estavam a organizar o enterro da Escola. Consideravam que ali já pouco se ensinava, a escola estava morta e, portanto, havia que lhe fazer o enterro.

Eu não quis saber de mais nada e juntei-me logo ao alegre funeral. Metia um artístico caixão que era levado em ombros pelos corredores e salas de aula. À frente, numa lenga-lenga divertidíssima, o sacerdote oficiante, vestido a preceito segundo me lembro, era o Pedro Brandão.

O caixão entrava nas salas de aula e os professores eram informados de que as aulas tinham de parar porque a Escola tinha morrido e portanto...

Os professores alinhavam na coisa. Era Belas Artes e, apesar de tudo, havia uma maior capacidade de aceitar a irreverência jovem. Ao fim de uma meia hora
éramos uns 400 estudantes na procissão do enterro. Em coro cantávamos os estribilhos: "ESBAL ESBAL está podre e cheira mal" e "A escola é nossa!A escola é nosssa" sobre ao ritmo a marcha oficial que dizia "Angola é nossa! Angola é nossa!"

Apenas um professor resistiu, o Pinheiro, que estava a fazer um teste de Geometria Descritiva numa sala da cave do velho convento de S. Francisco onde a Escola está instalada.

Bateu-se à porta e quem veio atender foi um colega nosso pouco recomendável, filho de uma personagem qualquer do fascismo brasileiro, um matulão do caraças que fez peito à malta toda, a armar-se em paladino de alguma Guerra Santa.

Teve azar. À frente vinham logo o Carlos Mendes, o Catita e o João Paulo Bessa (na altura jogador de rugby...), tudo gente que "disparava primeiro e perguntava depois".
Não sei quem foi que lhe deu um "encontrão". Só sei que o rapaz brasileiro deu três voltas no ar e entrou pela aula de trambulhão.

Depois entrou-se na sala e informou-se delicadamente os 12 colegas que estavam a fazer teste que a Escola tinha morrido e, portanto, não havia razão para fazer testes. E tirou-se-lhes as folhas de teste não fosse algum deles não entender o fundamento da questão.

O enterro continuou, saiu à rua, deu algumas voltas e regressou ao pátio da escola onde o caixão foi atirado à cisterna.

E é nestes alicerces que assenta a minha grande amizade pelo Carlos Mendes. Andamos agora a fazer mais umas canções. E a concordar com o O'Neill:

"...
neste reino de Pacheco,
ó meus senhores que nos resta
senão ir aos maus costumes,
às redundâncias, bem-pensâncias,
com alfinetes e lumes,
fazer rebentar a besta,
pô-la de pernas prò ar?"

terça-feira, 21 de outubro de 2008

ILHA DE MOÇAMBIQUE




Não é a pedra.
O que me fascina
é o que a pedra diz.

A voz cristalizada,
o segredo da rocha rumo ao pó.

E escutar a multidão
de empedernidos seres
que a meu pé se vão afeiçoando.

A pedra grávida
a pedra solteira,
a que canta, na solidão,
o destino de ser ilha.
O poeta quer escrever
a voz na pedra.
Mas a vida de suas mãos migra
e levanta voo na palavra.

Uns dizem na pedra nasceu uma figueira.

Eu digo: na figueira nasceu uma pedra.


Mia Couto

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Comigo me desavim





Comigo me desavim
Sou posto em todo o perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assi crecesse,
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meu espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda

domingo, 19 de outubro de 2008

O ALMOÇO DO LADO



O Artur Semedo é outro dos amigos pouco canónicos com quem tive o imenso prazer de conviver.

Tinha eu uns 12 anos, alguém da família arranjava bilhetes á borla, e eu vi vezes sem conta e sempre fascinado "O meu amor é traiçoeiro" no Teatro Monumental, um drama popularucho mas intenso e cheio de chispa, pelo que recordo. Dois actores em cena: Laura Alves e Artur Semedo. Mal eu sabia que me ia cruzar várias vezes na vida com aquele galã galifão que me deixava de boca aberta. Ele e a Dona Laura que era uma notável actriz.

O Artur Semedo foi benfiquista violento, actor, cineasta (Quem não viu "O Rei das Berlengas" com o Mário Viegas entre outros filmes igualmente delirantes?)




Unia-me ao Artur Semedo o gosto pela desmesura, o prazer de inventar histórias e desatinos, e o facto de ambos termos estudado no Colégio Militar, embora com uns quantos anos de diferença.

Dele ouvi histórias fantásticas de feitos amorosos e brigas, histórias que fazem parte de um cancioneiro por recolher da vida boémia lisboeta dos anos de chumbo do salazarismo.

A mais conhecida era a da luva preta que usava sempre na mão esquerda, creio eu, e da qual fez um mistério público até ao dia em prometeu tirar finalmente a luva para mostrar porque é que usava a luva preta. E quando tirou, em directo, na televisão, por baixo da luva tinha outra luva!

O Artur Semedo era um personagem de si próprio. Aquilo a que às vezes no teatro se chama um "tipão".

A certa altura, pelos anos 80, tivemos um vago projecto comum para um programa de televisão que era mais um pretexto para almoçarmos imperetrivelmente á segunda feira, durante vários meses, no defunto restaurante "António".

Era um regabofe. Divertíamo-nos mutio. Durava horas o almoço e a conversa corria livremente em todas as direcções.

O Artur tinha o prazer da rábula por vezes a raiar o limite do bom senso.

Um dia o restaurante estava cheio. Sentámo-nos numa mesinha encstada à de um casal estrangeiro muito compostinho que comia fondue.

Muito delicadamente, o Artur sorriu-lhes, cumprimentou-os e perguntou-lhes em português como estava o fondue. Sem nada perceber, o casal estrangeiro sorria imaginando que estava a ser brindado por qualquer espécie de gentil ritual de simpatia tipicamente portuguesa.

O Artur, sempre em grandes gestos de delicadeza um tanto histriónica, virou-se abertamente para o almoço do lado, pegou num garfo, picou um naco de carne, fritou-o no óleo e comeu-o.

O casal estrangeiro olhava-o começando a deixar amarelecer o seu sorriso. Mas o Artur não ficou por aqui. Continuou a comer-lhes o fondue com grandes tiradas pomposas, grandes gestos e rasgados sorrisos enquanto devorava todo o resto do fondue.

Os senhores não sabiam se haviam de rir ou de chorar ao ver a comida a desaparecer.

Eu... Foi por pouco que não me urinei nas calças para conter o riso pelo insólito delirante a que ninguém seria capaz de arrancar o Artur Semedo que, acabado o fondue, encomendou finalmente o nosso almoço.

sábado, 18 de outubro de 2008

MÃE




Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei! Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! Verdadeiro, encarnado!

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar! Tenho sede! Eu prometo saber viajar!

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te às minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! Ata as tuas mãos ás minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!

José de Almada Negreiros

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Te amarei mãe





Te amarei, mãe,
por dentro da matéria cega
em teu corpo amável
no calor de tuas mãos.

Te amarei, mãe,
como se a morte
fosse um segredo
e tu a plena quietude.

Te amarei, mãe
em tua secreta biografia
no filho
e na infância.

Te amarei, mãe,
na casa, no pão,
nas palavras diárias
na alegria, na dor.

Te amarei, mãe,
realidade-templo
de uma legião de mortos
água e sal dos vivos.

Te amarei, mãe,
quando sei e digo
Deus já não é sombra
mas naufrágio esplendoroso


Ana Marques Gastão

terça-feira, 14 de outubro de 2008

IRREVERÊNCIA




Há pessoas que atravessam a nossa vida de várias e inesperadas maneiras. foi o que me aconteceu com Luís de Sttau Monteiro, magnífico escritor e dramaturgo de obras como "Angústia para o jantar", "Felizmente há luar" ou "A guerra Santa".

O Sttau era um mito para mim, tanto por via do brilho da sua pena como das proibições com que a censura o brindava.

Tinha eu 18 anos (1969), não me recordo como foi, mas entrei como colaborador para "A Mosca", suplemento humorístico do "Diário de Lisboa", dirigido por José Cardoso Pires e onde conheci o Luís Sttau Mnteiro que aí publicava entre outras coisas as famosas redacções da Guidinha.´

É bom de ver que eu olhava para eles com muitíssimo respeito e a imensa felicidade de respirar o ar que eles respiravam, de os ouvir atentamente e procurar crescer com as suas palavras.

Voltei a cruzar-me com o Sttau no concurso "A Visita da Cornélia". Ele pertencia ao júri. Eu era concorrente. Convivemos durante 13 semanas intensas, com momentos emocionantes, nomeadamente as sessões do concurso no Porto onde ele, eu, o Pitum, o Assis Pacheco e outros, fomos ameaçados e até mais que ameaçados por uns patetas de uns rapazitos neo-nazis.

Durante este tempo, à admiração veio juntar-se a amizade.

Depois fomo-nos encontrando ao sabor das circunstâncias, unidos pelo amor à conversa, à escrita, à boa mesa e à irreverência que no caso dele atingia por vezes o delirio.

A última vez que o vi, pouco antes da sua morte, estava eu parado no vermelho dos semáforos a meio do Campo Grande. Ouvi atrás uma valente buzinadela. Pelo retrovrisor dei com o Sttau a sair do seu carro direito a mim.

Saí do meu carro para o inevitável abraço e ali ficámos à conversa, entusiasmada e vagabunda como sempre. E o sinal ficou verde. E os outros automobilistas começaram a protestar e a buzinar.

E foi aqui que saltou a irreverência do Sttau e a sua chispa de saudável loucura. Desatou a insultar os aumobilistas acusando-os de quererem impedir que dois amigos se cumprimentem e pudessem conversar a seu bel prazer.

A situação tornou-se tão absurda que os outros não tiveram outro remédio senão contornar-nos e seguir furiosos mas vencidos. E nós ali ficámos, em plena estrada, na boa cavaqueira.

Ficou-me na memória o seu sorriso sardónico, o gesto com que afastava o cabelo da testa, a grandeza daquela maneira aristocrata de estar na vida.

Ao ver a apagada tristeza que vai pelas nossas escolas, a revolta intensa mas inconsequente que grassa entre os melhores professores, pergunto-me que será feito da irreverência e da rebeldia com que se fazia um manguito aos mandantes tiranotes e aos condutores apressados. Em vez dsso, temos o lamento, a desistência ou a acomodação.

Que saudades do Sttau.

domingo, 12 de outubro de 2008

MÃE




MÃE


Ouvi chamar-te pela primeira vez numa rua sem árvores
Mas onde eu sabia haver tílias florindo.
Com uma alma enorme
Como só têm o mar e os desertos, reconheci-te numa
espécie de paixão
e foi assim que pude partilhar-te com a razão e a luz.
Como é que se faz, pergunto-me, para transformar
todo o perfume de Junho num pequenino nome? Tão
pequena morada guarda as mais inesperadas coisas: um ramo
de neve, o sol espreitando de uma ferida, o pequeno dócil
animal
mais leve e mais limpo do que o ar.
Ouvi-te pela primeira vez era já uma criança. Ou devo
dizer ainda? Com as tílias, floriram também os minúsculos
sons
dessa quase palavra, talvez mais rumor ou murmúrio,
mais, quem sabe?,
água que chega das nascentes do olhar.
Existem nomes onde nada cabe, outros que guardam a
ternura do mundo.
No teu nome brilha ainda a minha vida, esta espécie de
resposta
à pergunta incessante que me faz cada um dos meus dias.
Eu sei
que sou em grande parte a minha memória,
a memória que a roseira tem da chuva
ou a respiração do ar
ou a cigarra do estio
e que tudo, tudo, pode ter a dimensão afinal
de coisa nenhuma, ou a dimensão que colocou Deus
no coração de uma semente e o teu nome nas montanhas
do universo.
Eu sei que sempre coube inteiro no ventre
de uma palavra; que não precisei nunca
nem dos lábios, nem da fala, nem do mais intranquilo
pensamento
para saber do azul fundo do teu nome. Mas lembro-me
que me ouvi chamar-te pela primeira vez numa rua sem
árvores
onde eu vi – só eu vi? – tílias florindo.

sábado, 11 de outubro de 2008

O QUE É QUE APRENDESTE HOJE NA ESCOLA?



Qualquer semelhança com a realidade talvez não seja pura coincidência...


What Did You Learn in School Today
(Tom Paxto, cantado por Pete Seeger)

What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learned that Washington never told a lie
I learned that soldiers seldom die
I learned that everybody's free
That's what the teacher said to me
And that's what I learned in school today
That's what I learned in school

What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learned that policemen are my friends
I learned that justice never ends
I learned that murderers die for their crimes
Even if we make a mistake sometimes
And that's what I learned in school today
That's what I learned in school

What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learned that war is not so bad
I learned about the great ones we have had
We fought in Germany and in France
And someday I might get my chance
And that's what I learned in school today
That's what I learned in school

What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learned that our government must be strong
It's always right and never wrong
Our leaders are the finest men
So we elect them again and again
And that's what I learned in school today
That's what I learned in school

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

UMA LÍNGUA ANTERIOR



Foto Robert Doisneau

Muitos professores estão a pedir a reforma antecipada. Parece que gostavam de ensinar. Melhor do que isso (ou pior...). Gostavam de ajudar a crescer. Gostavam de ajudar a sonhar.


"...TALVEZ O RISO SEJA UMA LÍNGUA ANTERIOR QUE FOMOS PERDENDO À MEDIDA QUE O MUNDO FOI DEIXANDO DE SER NOSSO."


("Venenenos de Deus remédios do diabo", Mia Couto)

Também o sorriso dos professores, os autênticos, se vai perdendo à medida que o ensino vai deixando de o ser.

sábado, 4 de outubro de 2008

AS FÁBULAS




DA TERRA

Amar o mar completa a minha vida
com o tacto de um amor imenso.
Amar ateia a margem
arrebata-me de júbilo e paixão.
Mas veio o vento e, por momentos,
amargurou o meu corpo, a oscilar.
E está o sol aqui, depois de uns dias
de jardim obscurecido, a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem
e dançam como insectos
ébrios em redor do pólen.


DO SILÊNCIO

O pão do espírito chama pelos olhos
o pão da terra chama pela boca.
Mas quantas vezes o cego vê o Céu,
quantas vezes o farto engana a boca.

pois só o silencio visível aquieta
ao mesmo tempo os olhos e a boca.



Fiama Hasse Pais Brandão

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

RESPIRAÇÃO ASSISTIDA




DESVERSOS

Trinta anos depois continuo revoltadíssimo
Vª Exª foi de uma grande falta de chá
nem eu precsava de Angola - nunca!
nem Angola de mim - o que hoje parece claro

Vª Exª argumentava nos corredores
que eram ordens do dr. Salazar
ora adeus mandasse-o mas é a ele
tinha bom corpo para apanhar porrada

e mesmo Vª Exª podia ter feito
uma perninha como eu fiz em Zala
não sou de rancores nem pouco mais ou menos~
mas aquela merda estava mesmo parada

sabe Vª Exª o pasmo e a aflição
quando se caía em alguma emboscada?
umas vezes olhava pelo rabo do olho
outras fingia de morto e mijava-me

depois voltava-se ao acampamento
para a ternura dos cães e a tarimba rasa
um duche ao ar livre um cigarro infeliz
o gole de cerveja a atirar para o amargo

houve um fim de dia entre todos cinzento
que eu me senti o maior dos miseráveis
funesta ideia - e fui a correr esconder
a arma de serviço por sinal uma Walther

a esta hora já enterraram Vª Exª
com as competentes honras militares
mas a verdade é sempre para se dizer
trinta anos passados não me esqueço de nada


Fernando Assis Pacheco

MISSÃO EM HAPPY-COSMOS

Hoje, dia 2 de Outubro, chega às livrarias a minha última aventura literária feita, desta vez, de parceria com a minha amiga Luísa Beltrão.

Destina-se a jovens dos 14 anos em diante, embora estas divisões etárias sejam sempre muito pouco estanques. Enquanto escrevíamos pensávamos que o nosso leitor ideal teria 15 anos e estava no 10º ano.

Trata-se de uma aventura de 4 jovens que atravessam o tempo e o espaço numa viagem simbólica que os vai fazer confrontar-se com um universo aparentemente (mas só aparentemente) maravilhoso, onde a felicidade é obrigatória, a mmória é apagada e a imperfeição é eliminada.

Trata-se do primeiro de uma série de sete livros que constituirão em conjunto uma grande viagem iniciática destes quatro jovens que vão crescer confrontando-se com as grandes questões do Homem.




E o nosso romance começa assim:

- Uma árvore que fala? Que fala???? - O João Maria, a Emília e a Patanisca desataram a rir, cada um à sua maneira. Eram tão diferentes que até no riso tinham estilos próprios.
Furioso, o Vasco puxou o cabelo preto, muito liso e brilhante:
- Juro! É verdade! Aquela árvore falou comigo! – A voz tremia-lhe num soluço contido. Ele sabia que um homem não chora, mas ele não era um homem, apenas um rapazinho de doze anos a quem os amigos espetavam farpas em vez de ajudarem.
“O que é que eu faço agora?”