Leio tanto quanto posso.Faço da leitura uma relação imprescindível com o mundo, com os outros, comigo próprio.
Não tenho nenhum programa de leitura. Sou um nómada dos livros. Vou ao sabor de opiniões ou desopiniões de amigos, da corrida aos autores que me acostumei a amar, ou a outros pelos quais me nasceu alguma forma de curiosidade. Às vezes sigo pelo wncanto das capas, pelo resumo da badana, sei lá que mais.
As minhas leituras não são exemplo para nada nem para ninguém. Mas gosto de partilhar paixões e, entre essas, as que nasceram por alguns dos livros que li.
Fim do ano é altura de balanços. Porque não fazer o meu balanço de leituras?
Li o que li. Gostei do que gostei. Para que conste fica aqui. Mas que ninguém pense que pretendo fazer desse balanço qualquer exercício de autoridade policial.
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“FIRMIN”, SAM SAVAGE
Logo no início do ano li uma referência na "Babélia" do "El País" que me deixou de água na boca. Fui ler em espanhol (ainda não existe edição portuguesa. É o primeiro romance do autor, professor de filosofia numa universidade americana. Uma delícia rara. A história de Firmin, um rato que nasce no sótão de um alfarrabista. É o 13º filho de uma ratazana alcoólica que só tem 12 tetas. Firmin fica sempre de fora do materno leite e resolve a fome comendo livros. Daí, ficar um rato culto. E isto é só princípio. O romance é uma divertida e amarga reflexão sobre a nossa condição e a nossa identidade através deste rato maravilhoso.
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“O DIABO E OUTROS CONTOS”, LEV TOLSTOI
Este ano passou muito para mim sob o signo de Tolstoi. Ando fascinado com a sua arte notável e a forma como expõe o mais secreto da natureza humana. São excelentes as traduções que o casal Nina e Filipe Guerra têm feito para português.
Tremi com "A morte de Ivan Ilitch" e "A valsa de Kreutz". As personagens de Tolstoi somos nós, cada um de nós, no mais fundo e scondido dos nossos corações.
Os contos de "O Diabo" são de várias épocas da sua vida. Têm diferentes respirações mas são todos eles, pequenas obras primas que nos levam a pensar que a arte da escrita é provavelmente a suprema entre todas as artes.
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“O ÚLTIMO LEITOR”, DAVID TOSCANA
É espantosa a quantidade de belíssimos escritores latino-americanos que surgem a cada dia que passa.
este conta-nos a história de um homem que aceita ser bibliotecário numa aldeia do deserto e que censura os livros que acha mal escritos. E é também a história de um crime e de como o bibliotecário o tenta descobrir e encobrir a partir dos romances que leu.
É finalmente a história de um amor improvável e impossível em torno do amor aos livros e às histórias que eles contam. O amor por uma mulher a quem mataram a filha e a quem o bibliotecário vai dando pistas verdadeiras e falsas a partir da paixão comum pela leitura e pelos livros.
"O último Leitor" é um pouco nós que, através das leituras, andamos à procura de um fio para nos entendermos connosco próprios e com o mundo.
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“UM BOM HOMEM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR”, FLANNERY O’CONNOR
Andei com o livro debaixo de olho muitos meses. Finalmente peguei nele e foi como se um terramoto me tivesse apanhado.
A autora fala-nos de uma América rural, sulista, racista, mesquinha, obscura. E em cima desse cenário faz-nos mergulhar na cabeça de pessoas obsessivas, desconfiadas, medrosas, limitadas. Gente terrível, gente carregada daquilo de que se faz a humanidade em todas as suas vertentes. Gente sem horizontes. Encerrada numa imensa paisagem, num imenso país que parece uma grande colmeia com muitos pequenos favos completamente isolados entre si.
A narração faz-nos mergulhar num estado de espanto, por vezes com alguma ternura, muita melancolia, e momentos de pura surpresa e pavor.