quinta-feira, 2 de julho de 2009

MULHER CÃO



(Pintura de Paula Rego da série "Mulher-cão")


MULHER CÃO

(Sobre uma pintura de Paula Rego)

Ela acendeu a brasa do fogão
anos e anos a fio.

Esfregou o soalho
lavou a roupa e os vidros da janela
costurou bainhas descosidas
e levou toalhas a cheirar a rosmaninho
à senhora do andar
de cima.

Vai ao quintal buscar hortelã para a canja
e adormece ao som das gargalhadas dos meninos
hoje já todos engenheiros
com a Graça do Senhor.

Agora está atada ao côncavo da terra
por atilhos grossos.

Ladra á lua
e tudo nela
é carne e sangue.

Morde a mão
e dança a valsa
sobre o chão confuso
de algum sonho diluído lá no longe
dos botões dourados
do maestro de um coreto
nos domingos e feriados.

Ela é grossa
e ladra á lua.
Sente o corpo a crepitar
e rasga o coração.

Entre sangues fala línguas
que nunca ninguém lhe ensinou.

Está atada
à sangrenta forja
das gramáticas lunares
e procura uma palavra
um nome mesmo que obscuro e
difícil de entender.

É uma mulher grossa
e no côncavo do corpo
fala línguas sem sentido.

Deixou secar os coentros
a salsa
e a hortelã.

Chama-se cão
e ladra à lua.

Vive atada
às chamas que a consomem.

José Fanha (inédito do livro a publicar "marinheiro de outras luas")

4 comentários:

Tiago Carvalho disse...

muito bonito.

Caçadora de Emoções disse...

Zé Fanha,
Gostei muito!..
Bom resto de semana.

Beijos mil e um sorriso :)

viajantes disse...

muito lindo fanha, inspirador,quase apetecendo responder em tom de verso, sobre a mulher mãe minha, igual a tantas estas outras, em tela atadas às chamas que as consomem.
um abraço

Margarida Tomaz disse...

Muito forte!