segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A LOUCA

A LOUCA


Até deus tem um ofício, nós é que não sabemos qual,
diz a louca.

É preciso colocar um pedaço de Dezembro
sobre este onde não nevou, diz a louca.

Sim, eu estou a perder a vista, mas não me venham falar
de letras grandes e pequenas,
eu vejo bem, tenho uma voz grossa,
diz a louca.

Não penses que me ponho a rir apenas
porque tenho uns belos dentes… Trata-se de uma visão vocal,
diz a louca.

Os cabelos sobre as costas da noite e a ira de uma concha
desvendarão a fineza das circunvoluções cerebrais da noz,
diz a louca.

Olha, todo este espaço preenchido pela ausência lúbrica
de um ladrão de cemitérios! Eu forço o destino docemente,
diz a louca.

Agora é que descobri que aquela minha amiga me traiu
apesar de calçar de vez em quando os meus chapéus,
diz a louca.

A camisa d forças não passa de um vestido de noiva para o registo
e outro para a igreja,
diz a louca.

Porque é que me puseram estes óculos escuros? Sem eles vejo muito bem
os impulsos cósmicos do cubismo!
Eu sou instruída!, diz a louca…

E teria dito por certo muito mais
se me tivessem dado uma pedra para me sentar
em vez de um momento de atenção,
diz esta louca…

Vladimir Holan

(Traduzido do francês por José Fanha. Revisto por Jorge Listopad)

2 comentários:

Júlio Pêgo disse...

O tema da loucura é interminável e encerra verdades que confrontam a razão, na procura de maior lucidez,de novos caminhos, desafios que os poetas tão bem sabem percorrer.

Licínia Quitério disse...

"É preciso colocar um pedaço de Dezembro
sobre este onde não nevou" - Claro! Como é que isso nunca me tinha ocorrido?
É bom saber de poetas e de loucos :)

Um beijo.