sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

ARY 25 ANOS




Faz no domingo 25 anos que ele se deixou adormecer. As suas palavras perduram. Sobretudo as das canções e as de combate.

É preciso recordar também as outras facetas do Ary. Aqui, o provocador.


JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS (1937-1984)



PAVANA PARA UMA BURGUESIA DEFUNTA


A cabeça de vaca de minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exaltação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto se não fosse a gordura
o retrato na sala o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
- não me limpaste o pó a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória.

2 comentários:

Maria disse...

Não tenho palavras para comentar o Zé Carlos. Sinto apenas uma enorme saudade...

Obrigada!
Beijos

Licínia Quitério disse...

E fico à espera da continuação da lição sobre Ary.

Um beijo.