quinta-feira, 31 de julho de 2008

SAÚL DIAS (1902-1983)



Saúl Dias

Saúl Dias é o pseudónimo poético do Júlio Maria dos Reis Pereira, irmão de José Régio.

Viveu na cidade do Porto onde se licenciou em engenharia civil pela Faculdade de Engenharia. Colaborou em vários jornais e cultivou o desenho e a pintura. Existe uma relação muito próxima entre a sua produção poética e a sua actividade como artista plástico.

Como artista plástico colaborou frequentemente na revista "Presença".

Não será um poeta desconhecido mas é certamente um poeta atirado para o limbo dos descartáveis (honra seja feita à Editora Quasi que pelo livro de homenagem que publicou).

Às vezes sabe bem e limpa a alma conviver com essa simplicidade lírica que caracteriza tanto a sua pintura como a sua poesia.

TODOS OS DIAS

Todos os dias
nascem pequenas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas…

Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, ou veludo…

Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações…

Todos os dias
nascem risos, canções…

Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs…

Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs…

Saúl Dias

quarta-feira, 30 de julho de 2008

MANUEL ALBERTO VALENTE (1945)



Manuel Alberto Valente


Nasceu em Vila Nova de Gaia, licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa e foi jornalista na revista Vida Mundial.

Começou a trabalhar na edição no final dos anos 60, na Inova. Tem corrido diversas editoras, nomeadamente a D. Quixote e a Asa, onde tem contribuido para a edição em Portugal de algumas das mais importantes obras da literatura mundial bem como para a divulgação de alguns dos mais destacados escriores portugueses.

É actualmente director da Divisão Editorial de Lisboa da Porto Editora.

Recentemente foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo governo francês.

O Manuel, amigo de encontros esparsos, não gosta especialmente de relembrar o seu trabalho poético que parou pelos anos 70.

Eu gosto muito deste poema que publico abaixo e que foi editado em 1970.

LADAÍNHA PARA O TEU ADORMECER

um velho muito velho a sonhar com a Soraya
um padre muito padre a dizer que é ateu
um prédio quase novo que se espera que caia
uma homenagem póstuma a alguém que não morreu

uma canária virgem que abandonou o ninho
uma fonte com água quase a morrer de sede
a dez tostões esticadores p’ró colarinho
um ginasta atrevido que trabalha sem rede

uma pomada mágica do próximo oriente
um macaco sem rabo que foi de foguetão
um bébé sem cabelo a chorar por um pente
uma tia doente a arder no fogão

uma cautela em branco na roda de amanhã
um nariz muito sujo sem ter onde se assoe
um ramo de camélias a estrelar na sertã
e que deus nosso senhor vos abençoe

Manuel Alberto Valente

terça-feira, 29 de julho de 2008

EDGAR CARNEIRO (1913)




Edgar Carneiro

Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Foi professor em Chaves, Lisboa, Porto, Vila Real, Fiães e Espinho, cidade onde vive desde 1967
.
Fez parte do Orfeão Académico de Coimbra e foi um dos fundadores do TEP - Teatro Experimental do Porto.

É pai do poeta, já falecido, Eduardo Guerra Carneiro.

Poeta claro, conciso e musical que vale muito a pena conhecer. Não é fácil encontrar os seus livros, a não ser o último, "Depois de amanhã", publicado pela Campo das letras.

Às vezes trocamos algumas palavras por escrito. previlégio meu. A sua amével verticalidade está tão presente nas cartas como nos versos.

ROTEIRO

De mar a mar e sempre
Ao sabor da maré
Até chegar feliz
À praia, ao porto, à ilha,
Ao alegre país
Da maravilha,
Ao longínquo sertão,
A qualquer céu possível
Ou local
Onde o Sol nos dê o pão
E o amor lhe ponha o sal.

Edgar Carneiro

segunda-feira, 28 de julho de 2008

EDUARDO GUERRA CARNEIRO (1942-2004)



Eduardo Guerra Carneiro

Nascido em Chaves, foi escritor e jornalista. Trabalhou ou colaborou em jornais tão diversos como o Diário Popular, Século, Se7e, Portugal Hoje, Match Magazine, O Primeiro de Janeiro, ABC, Europeu ou Tempo, e em diversos programas de rádio.

Foi homem da noite e da boémia serena, de conversa demorada e sem destino, vivendo sempre à margem dos sistemas.

Cruzámo-nos bastas vezes. Gostávamos de ficar à palheta. Falámos ao telefone pouco tempo antes de se cansar disto e sair pela janela com inveja dos pássaros.

Os seus livros, «Isto Anda Tudo Ligado», «Contra a Corrente», ou «Dama de Copas», todos publicados pela "&ETC" merecem ser lidos e bem mastigados.

FRAGMENTOS DE UMA ELEGIA – 1

Descansa, borboleta branca,
em minhas mãos abertas e retoma
o teu breve voar de um só dia.
Vens da noite misteriosa, espírito
de outro corpo. Que luz
de súbito se faz nesta loucura?
Melancolia, talvez, morte
chorada. Lanço-te ao vento.
Para que o fogo não volte
a queimar-te as asas.
A medo, terror mesmo, horas passadas,
olho-te tombada nesta sala.
Regressaste aqui, para morrer.
Mas à vida te devolvo. Voa, borboleta!

Eduardo Guerra Carneiro

domingo, 27 de julho de 2008

EDMUNDO DE BETTENCOURT (1899-1973)



EDMUNDO DE BETTENCOURT

Nasceu no Funchal e foi em 1927 um dos fundadores da revista literária Presença

Foi a música e o fado de Coimbra que o popularizaram, de tal modo que mesmo gerações posteriores o aclamaram; José Afonso, cujo pai fora contemporâneo de Bettencourt, considerava-o o "maior cantor de fados de todos os tempos".

Parece hoje claro que, para a qualidade artística de Edmundo Bettencourt, muito contribuiu o facto de ter sido acompanhado à guitarra por Artur Paredes.

Manuel Alegre reconhece que Bettencourt constitui uma "grande figura do fado de Coimbra ao lado de Artur Paredes"; que "trouxe algumas das mais belas canções populares e um lirismo mais forte". E acrescenta: "Lembro-me que os cantores da minha geração queriam todos cantar como Bettencourt, uma oitava acima".

Rui Pato, outro dos notáveis do fado de Coimbra, recorda Bettencourt como "o primeiro grande inovador"; "o percursor da linha que foi depois seguida por Zeca Afonso, ao introduzir no fado temas dos Açores, da Beira Baixa, de várias regiões". E "é também um poeta, um progressista que rompeu com a tradição seguida nos anos 20/30"; "aprendi a gostar de Bettencourt com José Afonso, que, aliás, lhe dedicou um dos seus discos de fado de Coimbra".

Segundo Herberto Helder, "Cabe a Bettencourt a honra de ser uma das pouquissimas vozes modernas entre o milagre do 'Orfeu' e o breve momento surrealista português".

ADEUS

- Quando aqui estou, estou no Céu!
Ela dizia.
E eu ficava melancólico a pensar
como seria
aquele céu, tão simples,
aonde não chegava
o meu sonho mais alto de alegria!

Como seria?

Nesse tempo de tão calmo
sem um começo nem um fim,
seus belos olhos tristes,
quando olhavam para mim
fugiam logo.

Que envergonhados e descidos,
eram bem um adeus
lá do remoto paraíso
cuja plena felicidade
miravam, adormecidos...

Como eu seguia ausente
e cada vez mais distante
da vida,
até chegar subtilmente
ao instante
em que já era um véu de morte
a presença daquela despedida!

O ar então,
pelo terraço,
fechava-se doirado, como num salão,
e ela adormecia...

Dum recanto do Azul
um raio de luz descia
até à luz do seu sorriso
ainda de donzela.
Atraídas,
chegavam borboletas,
coloridas,
que tombavam tontas e inocentes
por sobre ela.

E numa janela
que ali se desenhava,
que breve se fechava
sem rumor,
vinha por fim roçar a asa
um corvo branco anunciador!

Ela dormia a sono solto,
sob a minha vigília,
que para Ela, a enamorada,
seria
a vigília temerosa do seu Deus.
Dormia,
os olhos bem cerrados
no mais cerrado adeus.

E a sua boca de morta-viva,
saudosa das palavras sonhadoras,
sorria sempre, sorria.

- Quando aqui estou, estou no Céu!

Era agora o sorriso que dizia...

Edmundo Bettencourt

sábado, 26 de julho de 2008

ANTÓNIO FEIJÓ (1859-1917)




António Feijó


Nasceu em Ponte de Lima e morreu em Estocolmo, 20 de Junho de 1917)

Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra e tornou-e diplomata.

Como poeta é habitualmente ligado ao Parnasianismo.

O poema de António Feijó que publico em baixo, à semelhança de alguma poesia de António Nobre, é de um lirismo excessivo, quase pingão, mas resiste na linha limite que separa a chorqaminquice supostamente poética da verdadeira emoção das grandes obras.

PÁLIDA E LOIRA

Morreu. Deitada no caixão estreito,
Pálida e loira, muito loira e fria,
O seu lábio tristíssimo sorria
Como num sonho virginal desfeito.

- Lírio que murcha ao despontar do dia,
Foi descansar no derradeiro leito,
As mãos de neve erguidas sobre o peito,
Pálida e loira, muito loira e fria...

Tinha a cor da rainha das baladas
E das monjas antigas maceradas,
No pequenino esquife em que dormia...

Levou-a a morte na sua graça adunca!
E eu nunca mais pude esquecê-la,nunca!
Pálida e loira, muito loira e fria...


António Feijó

quinta-feira, 24 de julho de 2008

YVETTE K. CENTENO (1940)



Yvette K. Centeno

De família de origem germano-polaca, Yvette K. Centeno licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa em 1963, tendo começado a leccionar como assistente na mesma faculdade no ano seguinte. Em 1974, passa a leccionar na Universidade Nova de Lisboa, onde é actualmente professora catedrática na área de Literatura Comparada e Coordenadora do Departamento de Estudos Alemãe da Universidade Nova de Lisboa.

Fundou e dirige o Gabinete de Estudos de Simbologia, assim como um núcleo de estudos Teatro e Sociedade.

Foi co-fundadora do CITAC, um dos mais importantes grupos de teatro universitário, de Coimbra.

Tem desempenhado cargos como consultora e comissária em várias iniciativas governamentais e de âmbito cultural.

A incursão nos domínios do simbólico constitui um campo especial do seu trabalho de investigação.

Na obra ensaística, destacam-se as várias obras sobre aspectos da vida e da poesia de Fernando Pessoa.

É autora de traduções para português de obras de, entre outros, Stendhal, Goethe, Shakespeare, Brecht, Celan e René Char.

É Chevalier dans l'Ordre des Palmes Académiques por decreto do Primeiro-ministro Francês (1997) e foi condecorada com a Verdienstkreuz 1. Klasse, atribuída pelo Presidente da República Federal da Alemanha (1994).

É uma poeta que sabe bem ler e reler.

MULHER

MULHER


quando o ventre é o mar
quando o ventre é a água
salgada
numa boca
quando o ventre é a fonte
quando o ventre é a forca



Yvette K. Centeno

quarta-feira, 23 de julho de 2008

CARLOS EURICO DA COSTA (1928-1998)



Carlos Eurico da Costa

Carlos Eurico da Costa nasceu em Viana do Castelo. Foi, com Mário Cesariny, António Maria Lisboa e Cruzeiro Seixas, fundador do Grupo Surrealista português, tendo participado, como artista plástico, na Primeira Exposição dos Surrealistas com um conjunto de desenhos intitulado Grafoautografia. Dentre as actividades a que se dedicou, contam-se a poesia, a tradução, o jornalismo, a crítica cinematográfica, a edição, as relações públicas e a publicidade. Tem colaboração dispersa por diversas revistas, nomeadamente Árvore (1951-1953), Seara Nova, A Serpente (1951) e Colóquio/Letras. Foi presidente da Associação Portuguesa de Escritores.

"A cidade de Palaguin", que aqui vem por baixo é dos poemas que sempre me tocaram pela força, pela raiva, pelo disparar do vidro das imagens em todas as direcções.

Conheci brevemente o Carlos Eurico da Costa num almoço com a comum amiga Maria velho da Costa. Fiquei com pena de não me ter cruzado mais com ele. Fica a poesia para lhe conhecer a asa.

A CIDADE DE PALAGUIN

Na cidade de Palagüin
o dinheiro corrente eram olhos de crianças.
Em todas as ruas havia um bordel
e uma multidão de prostitutas
frequentava aos grupos casas de chá.
Havia dramas e histórias de era uma vez
havia hospitais repletos:
o pus escorria da pora para as valetas.
Havia janelas nunca abertas
e prisões descomunais sem portas.
Havia gente de bem a vagabundear
com a barba crescida.
Havia cães enormes e famélicos
a devorar mortos insepultos e voantes.
Havia três agências funerárias
em todos os locais de turismo da cidade.
Havia gente a beber sofregamente
a água dos esgotos e das poças.
Havia um corpo de bombeiros
que lançava nas chamas gasolina.

Na cidade de Palagüin
havia crianças sem braços e desnudas
brincando em parques de pântanos e abismos.
Havia ardinas a anunciar
a falência do jornal que vendiam;
havia cinemas: o preço de entrada
era o sexo de um adolescente
(as mães cortavam o sexo dos filhos
para verem cinema).
Havia um trust bem organizado
Para a exploração do homossexualismo.
Havia leiteiros que ao alvorecer
distribuíam sangue quente ao domicíio.
Havia pobres a aceitar como esmola
Sacos de ouro de trezentos e dois quilos.
E havia ricos pelos passeios
implorando misericórdia e chicotadas.


Na cidade de Palagüin
havia bêbados emborcando ácidos
retorcendo-se em espasmos na valeta.
Havia gatos sedentos
a sugar leite nos seios das virgens.
Havia uma banda de música
que dava concertos com metralhadoras;
havia velhas suicidas
que se lançavam das paredes para o meio da multidão.
Havia balneários públicos
Com duches de vitríolo – quente e frio
- a população banhava-se frequentes vezes.

Na cidade de Palagüin
havia Havia HAVIA ...

Três vezes nove um milhão.


Carlos Eurico da Costa

terça-feira, 22 de julho de 2008

FERNANDA BOTELHO (1926-2007)



Fernanda Botelho

Nasceu no Porto, em 1926, filha de uma família aristocrática com um sentido de austeridade com o qual iria romper.

Quis entrar em Direito, mas tal foi-lhe proibido pela mãe, que conseguiu levá-la a um "curso de mulheres", em Coimbra. Depois de ter iniciado os estudos, considerou que o meio coimbrão era demasiado conservador e muda-se para Lisboa.

"Quando cheguei a Lisboa, à estação do Rossio, parecia que tinha chegado ao paraíso", diz Fernanda Botelho. Os testemunhos de autores como António Manuel Couto Viana ou Urbano Tavares Rodrigues contam o percurso da escritora e explicam a influência de David Mourão-Ferreira, que se tornou um "mentor espiritual".

Apesar de se ter estreado como poetisa na revista literária Távola Redonda, Fernanda Botelho quis dedicar-se à prosa, lançando a sua carreira com O Enigma das Sete Alíneas, em 1956, mas é no Lourenço é nome de Jogral, de 1971, que a própria confessa haver uma forte nota autobiográfica. O seu último livro, Os Gritos da Minha Dança, foi editado em 2003.

QUOTIDIANO

Sou eu. Sabes quem sou?
Não, não digas nada.
Sei apenas que estou
Acabrunhada.
E se inclino o rosto,
Se pareço uma pirâmide truncada
com sobrecasaca de frio,
é porque não gosto
de puxar o fio
à meada.

(Escadas escuras
subidas dia a dia.
Pernas cansadas
e solas gastas.
Harmonias acabadas
num gesto torvo.
Tremenda nostalgia
de iluminações vastas
e de calçado novo).

Pernas cansadas? Sim.
Magras? Talvez.
Aqui, onde me vês,
já fui assim
… roliça,
como bocejo na hora da preguiça…

Aqui, onde me vês,
não é a mim que me vês.
É a magricela
que sobe aquela
escada de sonhos desiguais
que me constrangem.

- E ainda para mais
os meus sapatos rangem.

Fernanda Botelho

domingo, 20 de julho de 2008

MENDES DE CARVALHO (1927 - 1988)



Mendes de Carvalho

"O autor nasceu no Alcaide, pequena aldeia que aparece nos mapas decentes. Ali aprendeu as primeiras letras. Na capital, as segundas, as terceiras e outras. Mas foi de facto em Lisboa que, tendo começado a sonetar antes de romper a barba, se tornou afinal anti-sonetista".

Neste texto fala Mendes de Carvalho de si próprio com a ironia e o gosto pela sátira que colocou em muito da sua obra que teve especial expressão no teatro e na poesia.

Foi um homem de sete instrumentos, sempre muito próximo de grupos teatrais ("Casa da Comédia", "Teatro Estúdio de Lisboa e "Clube Palco"), orientou páginas literárias e colaborou em jornais e revistas literárias com poemas, artigos e ensaios sobre literatura e artes plásticas.

A "Cantiga dos ais" que abaixo publico conhecia-a na voz certeira do Mário Viegas.

Fotografia do Mendes de Carvalho não consegui encontrar. Mas encontrei um blog cujo título se inspira no título de um dos seus livros ("Poemas de Ponta & Mola"): pontaymola.blogspot.com , que tem como epígrafe um verso do poeta: "...neste país tudo é fado doa a quem doer até o pessoa dá para gemer."

CABTIGA DOS AIS

Os ais de todos os dias
os ais de todas as noites
ais do fado e do folclore
o ai do ó ai ó linda

Os ais que vêm do peito
ai pobre dele coitado
que tão cedo se finou

Os ais que vêm da alma
ais d’amor e de comédia
ai pobre da rapariga
que se deixou enganar
ai a dor daquela mãe

Os ais que vêm do sexo
os ais do prazer na cama
os ais da pobre senhora
agarrada ao travesseiro
ai que saudades saudades
os ais tão cheios de luto
da viúva inconsolável

Ai pobre daquele velhinho
ai que saudades menina
ai a velhice é tão triste

Os ais do rico e do pobre
ai o espinho da rosa
os ais do António Nobre
ais do peito e da poesia
e os ais doutras coisas mais
ai a dor que tenho aqui
ai o gajo também é
ai a vida que tu levas
ai tu não faças asneiras
ai mulher és o demónio
ai que terrível tragédia
ai a culpa é do antónio


Ai os ais de tanta gente
ai que já é dia oito
ai o que vai ser de nós

E os ais dos liriquistas
a chorar compreensão

Ai que vontade de rir

E os ais do D.Dinis
ai Deus e u é

Triste de quem der um ai
sem achar eco em ninguém

Os ais da vida e da morte
ai os ais deste país


Mendes de Carvalho

sexta-feira, 18 de julho de 2008

AFONSO DUARTE (1884-1958)

Afonso Duarte


Afonso Duarte participa em tudo o que de novo, poética e literariamente importante, vai marcando a vida cultural do país na primeira metade do sé. XX.

Professor da Escola Normal Primária de Coimbra, onde foi colocado em 1919, a uma extraordinária e inovadora experiência pedagógica, a partir de desenhos infantis. Os seus trabalhos são enviados ao Congresso Internacional de Educação Nova, em Lucarna, e alcançam repercussão europeia. Professores de diversos países europeus vêm a Coimbra para os estudar.

Com a instauração da ditadura, são afastados das suas cátedras alguns dos mais ilustres professores portugueses. Afonso Duarte não abdica das suas convicções democráticas. E em 1932 é compelido à aposentação.


"Prodígio de poesia, prodígio de portugalidade." é como Manuel Alegre se refere a Afonso Duarte num texto publicado em:

http://www.manuelalegre.com/index.php?area=1420&id=887

O soneto que segue aqui por baixo é, certamente, dos grandes momentos da poesia portuguesa dos últimos cem anos.

ROSAS E CANTIGAS

Eu hei-de despedir-me desta lida,
Rosas? – Árvores! hei-de abrir-vos covas
E deixar-vos ainda quando novas?
Eu posso lá morrer, terra florida!

A palavra de adeus é a mais sentida
Deste meu coração cheio de trovas...
Só bens me dê o céu! Eu tenho provas
Que não há bens que pague o desta vida.

E os cravos, manjerico, e limonete,
Oh! que perfume dão às raparigas!
Que lindos são nos seios do corpete!

Como és, nuvem dos céus, água do mar,
Flores que eu trato, rosas e cantigas,
Cá, do outro mundo, me fareis voltar.


Afonso Duarte

quinta-feira, 17 de julho de 2008

ISABEL MEYRELLES (1929)



Isabel Meyrelles


Escultora e poetisa portuguesa nascida em 1929, em Matosinhos.

Aos 16 anos iniciou os estudos de escultura no Porto, mas decidiu ir para Lisboa onde encontrou Mário de Cesariny e Cruzeiro Seixas, e assistiu ao surgimento do Grupo Surrealista Português ao qual ficou sempre, de alguma forma, ligada.

Foi viver e estudar para França, seu país de adopção e com o qual se identifica.

Em Paris continuou os estudos, desta vez não só de Escultura, na Ecole National Supérieure des Beaux-Arts, como também de Literatura, na Universidade de Sorbonne.

Conhecia apenas um poema seu publicado nas velhas “Líricas Portuguesas” da Portugália Ediora. Descobri com surpresa e entusiasmo o resto a sua poesia publicada recentemente pela Quasi.

ESCULTURA



Isabel Meyrelles

Tu já me arrumaste

Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjectivo
tu és ainda o meu relógio de vento
a minha máquina aceleradora de sangue
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti
o nocturno passeio do gato no telhado?


Isabel Meyrelles

quarta-feira, 16 de julho de 2008

EMANUEL FÉLIX (1936-2004)



Emanuel Félix

Nasceu e morreu em Angra do Heroísmo. Poeta, ensaísta, autor de contos e crónicas, crítico literário e de artes plásticas.

Especialista em restauração de obras de arte e, especialmente, de arte sacra, estudou no Instituto Francês de Restauro de Obras de Arte (Paris), na Escola Superior de Belas-Artes do Anderlecht e na Universidade Católica de Lovaina, onde se especializou no Laboratório de Estudo de Obras de Arte por Métodos Científicos do Instituto Superior de Arqueologia e História da Arte da mesma Universidade.

Cruzei-me com ele nalgumas infelizmente poucas noites de boémia, copo e petisco. A sua afabilidade, a cultura vasta, o gosto pela conversa vadia, deixou-me uma imensa pena de não o ter conhecido melhor e não ter privado mais com ele.

Visito-lhe os versos e, na minha gavetinha das dos tesouros precisos, guardo
este poema raro intitulado "AS RAPARIGAS LÁ DE CASA".

AS RAPARIGAS LÁ DE CASA

Como eu amei as raparigas lá de casa

Discretas fabricantes da penumbra
Guardavam o meu sono como se guardassem
O meu sonho
Repetiam comigo as primeiras palavras
Como se repetissem os meus versos
Povoavam o silêncio da casa
Anulando o chão os pés as portas por onde
Saíam
Deixando sempre um rastro de hortelã
Traziam a manhã
Cada manhã
O cheiro do pão fresco da humidade da terra
Do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e
materno
das manadas quando passam)

aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos
dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o seu lado mau de sua inexplicável
bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa


Emanuel Félix

terça-feira, 15 de julho de 2008

TERESA RITA LOPES (1937)




Teresa Rita Lopes

Nasceu em Faro. Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Viveu 13 anos em Paris onde foi professora na Sorbonne e defendeu a tese de doutoramento "Fernando Pessoa et le drame symboliste – héritage et création". É Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa. Ensaísta, ficcionista, dramaturga e poeta.

É um dos maiores especialistas contemporâneos em Fernando Pessoa. Tem centrado o seu trabalho académico na obra deste poeta e dedica-se especialmente à divulgação da parte inédita da sua obra.

Pessoalmente tenho uma grande ternura pela sua poesia que se situa do lado luminoso da literatura. A qualidade não tem que ser sinónimo de obscuridade. Por isso é tão importante que a poesia dos poetas claros e solares como Teresa Rita Lopes não fique sempre fora de moda (ou das modas).

ESTA CASA NOVA

Esta casa nova começa a afeiçoar-se a mim
e eu a ela:
já desabrocham flores em inesperados
sítios
e no jardim em frente do meu olhar
as árvores já perceberam que as espreito
continuamente
e por isso se enfeitam para mim.
Acabo de descobrir num quintal das traseiras
um pinheiro que nunca antes tinha visto
e que
ali engorda como um gato.
Então dá-me para
dizer: “Olá casa!”
como quem diz: “olá gato!”
e ela ronrona.

Terea Rita Lopes

domingo, 13 de julho de 2008

RUI NAMORADO (1941)



Rui Namorado

Cooperativista e jurista, é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Rui Namorado é sobrinho de Joaquim Namorado e pertence à geração académica de 62. A sua obra insere-se numa tradição poética coimbrã em que o lirismo dá o braço á indignação cívica e que inclui outros poetas como Manuel Alegre e Fernando Assis Pacheco.

É um amigo. À distância. Mas não são as distâncias que quebram os laços entre os poetas que "rimam" para o mesmo lado.

O seu blog vale bem a pena ser visitado. Chama-se "O Grande Zoo" e o endereço é:
http://ograndezoo.blogspot.com/

Convocamos a Poesia

Convocamos a poesia para ouvir o futuro.

De novo a descobrimos
como discreto rumor do universo,
como íntimo sabor das coisas,
ligeiro perfume do tempo e da saudade.

Podemos procurá-la no vento
como simples murmúrio,
punhal de alegria no coração da aventura.


Rui Namorado

sábado, 12 de julho de 2008

JOAQUIM NAMORADO (1914-1986)



Joaquim Namorado

Poeta e ensaísta português licenciado em Ciências Matemáticas e durante décadas compulsivo professor particular e doméstico, exerceu a seguir, desde 25 de Abril de 1974 até à aposentação, as funções de professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

Poeta do primeiro neo-realismo que trouxe para a poesia a dureza, a raiva e a revolta contra a miséria e a vergonha do Portugal salazarista, não deixando de dar ao verso uma músicalidade, um ritmo e um tom que viria a fazer escola.

CARIDADE

As senhoras da sociedade
deram um baile a rigor
para vestir a pobreza
e a pobreza horas a fio
cortou, coseu, enfeitou
os vestidos deslumbrantes
que a caridade exibiu.
Depois das contas bem feitas
bem tiradas as despesas
arranjou um namorado
a mais nova das Fonsecas;
esteve bem a viscondessa,
veio o nome e o retrato
da comissão nos jornais,
e o Doutor, o Menezes,
o senhor desembargador,
estiveram muito engraçados,
dançaram o tiro-liro
já meio-tombados...
Parece que ainda sobrou
algum dinheiro para chita
para vestir a pobreza
numa festa comovente
com discursos de homenagem
e uma missa...

a que assistiu toda a gente

Joaquim Namorado

quinta-feira, 10 de julho de 2008

PEDRO OOM (1926-1974)



Pedro Oom

Pertenceu ao acidentado Movento Surrealista Português por onde passaram e de onde saíram poetas tão importantes como Alexandre O'Neill, Mário Cesariny, António Maria Lisboa, António Pedro, Artur Cruzeiro Seixas e vários outros.

Como um pouco por todo o mundo, o Surrealismo foi uma explosão de criatividade por vezes radical onde ainda hoje podemos ir beber muito boa poesia que às vezes ficou presa na gaveta da circunstância ou em edições perdidas.

Há um pequeno livro de Pedro Oom que ainda se encontra por aí para quem souber procurar.´Chama-se "Actuação escritA" E é um desses maravilhosos e por vezes loucos livrinhos das edições &etc.

Pedro Oom morreu no duia 26 de Abril de 1974 durante um jantar que comemorava o 25 de Abril Viveu a alegria e evitou esta amarga ressaca que calhou aos que ficaram.

ACTUAÇÃO ESCRITA

Pode-se escrever

Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever



Pedro Oom

UMA FORMA DE VIAJAR

A propósito deste desfilar por alguns poetas que não estão na moda ou/e que são menos conhecidos, o meu amigo Samuel, O Cantigueiro, deixou-me estas palavras num post:

"É uma bela forma de viajar, esta tua. Ir avançando, passo a passo, parando aqui e ali, falando com quem está, apanhando uma ou outra flor mais escondida, fazendo grandes desvios da estrada principal...
Bela forma de viajar!"

Comoveu-me, o malandro. Porque é mesmo uma viagem de um amante da poesia, gato com o rabo escaldado das oficialidades, dos opinantes, dos academistas, dos rapazes dos lobies... Sei lá.

Sempre andei por margens. Mas também sempre guardei memória das paixões, das vivências e das convicções.

Por isso faço deste blog um lugar de recordar coisas e pessoas. Recordar alguns que por isto ou po aquilo têm sido injustamente esquecidos. E assim me vou recordando de mim, como fui, como vou sendo, como serei enquanto a teimosia me der chama.

A verdade é que gosto de poesia. Gosto muito de poesia e de a partilhar. Tenho passeado pela poesia portuguesa até aos recantos mais remotos. É muito rica a arca da poesia portuguesa e, sobretudo, da poesia portuguesa desde o último quartel do séc. XIX até finais do séc. XX.

Fico feliz quando dou a conhecer um poema ou um poeta a alguém que não o conhecia e que fica a sentir-se de súbito preso por essa mágica teia de palavras (Olá licínia). Essa partilha fica a ligar-nos e o tempo da solidão e do desalento torna-se mais doce e traz-nos mais alguma promessa de consolo.

Pelas tuas palavras, Samuel, e ainda pela tua arte, também ela a viver na margem mais fraterna da vida, um grande abraço, meu amigo, um grande abraço!

terça-feira, 8 de julho de 2008

ANTÓNIO REBORDÃO NAVARRO (1933)



António Rebordão Navarro

Natural do Porto, advogado, poeta ligado ao chamado 2º neo-reAlismo esteve muito ligado a uma notável revista de poesia dos anos 50, "Notícias do Bloqueio".

Cruzámo-nos durante alguns anos nas reuniões da direcção da SPA. Ficou-me a afabilidade, o calor, a simpatia aberta e a promessa nunca cumprida, mea culpa, de o visitar no Porto.

A sua obra é vasta e abrange vários géneros, romance, teatro, memórias, viagens. Mas é da poesia que falo aqui. Fui dando com ela em várias pubicações por aqui e por ali. Relê-la hoje pode ser uma supresa inesperada. Uma breve antologia foi publicada há meia dúzia de anos pela ASA.

ESTACIONAMENTO PROIBIDO

Circulem, senhores, circulem.
Não parem junto aos mortos,
não estacionem no silêncio,
não se detenham ante o sangue.
Circulem, senhores, circulem.
Não interrompam o tráfico,
não deixem de cumprir ordens,
não deixem de ser neutros
e desapiedados.
Circulem, senhores, circulem.
Há muita gente que tem horas,
há muita gente que tem pressa,
há muita gente que deve esquecer.
Circulem, senhores, circulem.
Façam de conta,
fechem os olhos,
tapem os ouvidos.
Circulem, senhores, circulem.
Deviam já estar habituados,
deviam não ter lágrimas,
nem espanto, nem irmãos.
Circulem, senhores, circulem.



António Rebordão Navarro

MANUEL CINTRA (1956)




Mnuel Cintra

O meu querido amigo Manuel Cintra também anda de poesia às costas. Como eu. Talvez por isso, ou talvez não, gosto da poesia dele. gosto da emoção que transpira. Gosto de o ouvir a dizer poesia. Gosto de o ver a representar.

O Manel sempre viveu numa certa margem, mantendo saudável distância de opinantes e fazedores de modas. Vive a poesia. Atira-a por aí. Semeia livros por várias editoras. Vale a pena apanhá-los e ouvir-lhe o verso.

INFINITO O SILÊNCIO

MANUEL CINTRA (1956)


2.

Fez-se outono em janeiro, Pázinho,
e uma a uma, as gotas dela caem como folhas.
Agora o tempo e o tormento estão de braço dado
e eu que nunca paro dei comigo mais parado

do que ela que ao parar só luta
contra a corrente que toda a vida a inundou
de vida e contra-vida e de lutar
e de não querer que a morte fosse morte
nem houvesse despedida dos que partem
e se calhar ficam, perto de nós
a descansar.

Veio uma rajada mais fria, Pázinho,
e pôs-lhe os cabelos loiros
no sítio mais precioso da lembrança.
Agora caminhar vai ser difícil.
Tu vais sentir-te mais pesada,
e passo a passo e devagar e quase sem querer
vais reviver toda uma vida iluminada
por essa luz estranha essa alquimia particular
que se afasta agora, segundo a segundo
como quem previne que vem aí a escuridão.

E sei que te vai doer
como já a mim me dói tudo isto
esta luta absurda contra a própria luta
este correr parado contra o tempo
esta angústia de a ver assim deitada
e nada poder senão sorrir, com tristeza,
e mesmo assim para dentro,
que cá fora tudo flui num mar de lágrimas
e numa certeza grande enraizada.

Vai fazer-se outono outra vez,
um dia, Pázinho, e não haverá folhas
tal como agora.
Não se ouvirá cair um galho, nem cantar
gente ou pássaros ou céu ou chuva,
nada disto que nos confunde e atrapalha
quando no fundo o que queríamos
era apenas sofrer em paz.
Nem um dedo se moverá. Nem tu,
nem eu, nem a implacável corrente
dos minutos.

Aí,
que mais poderei fazer além de dar-te a mão
e partilhar contigo a cor da morte
a caminho do dia, a caminho do canto
pois nada do que parte se recusa a cá ficar
e toda ela é nossa, e nós dela somos,
e isso, Pázinho, ninguém o pode evitar.


Manuel Cintra

domingo, 6 de julho de 2008

ALBANO MARTINS (1930)




O meu amigo Albano Martins foi professor do Ensino Secundário de 1956 a 1976. Tendo ingressado, em 1980, nos quadros da Inspecção-Geral de Ensino, passou, em 1993, à situação de aposentado. Presentemente, é professor na Universidade Fernando Pessoa, do Porto.

A sua vasta obra poética oferece-nos uma contensão rara na poesia portuguesa e um lirismo minimal e intensíssimo. Muitos dos seus pomeas são pequenas pérolas que pousam nos ombros do leitor e ficam a iluminar-lhe o olhar.

A sua obra como tradutor é brilhante e vasta e permito-me destacar as suas magníficas e numerosas traduções de Neruda.

PARA O MUSEU DO HOMEM – 2

E o homem, então,
olhou em seu redor
e disse
às árvores: eu sou
a folha maior.
E as aves
do crepúsculo fizeram
ninho na sua boca.


Albano Martins

SIDÓNIO MURALHA (1920 – 1982)



Sidónio Muralha

Poeta do "Novo Cancioneiro" e do neo-realismo com forte marca político-social e com uma obra significativa e várias vezes premiada no campo da literatura para crianças.

Economista e gestor de empresas, vive no Congo Belga, na Bélgica, corre vários países como consultor de uma multinaciona e acaba por se fixar no Brasil.

SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA

Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas,
- o braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos... Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da Hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Sidónio Muralha

sexta-feira, 4 de julho de 2008

CARLOS QUEIROZ (1907 – 1949)



Carlos Queiroz


Poeta do segundo modernismo Português, identificado como um dos grandes nomes da Revista Presença.

É Carlos Queiroz,num número especial da Presença de homenagem a Fernando Pessoa, que dá a conhecer os amores de Fernando Pessoa por Ofélia Queiroz, sua tia. Publicando nesse número diversas cartas de amor de Pessoa escritas a Ofélia.

A sua obra é curta como curta foi a sua vida. Cabe em dois livros. Mas a elegância, a musicalidade e a contida emoção ressaltam de cada verso.

Vale muito a pena visitá-lo num tempo em que grande parte da jovem poesia portuguesa anda tão afastada da música da língua e da grandeza da emoção verdadeira.

CANÇÃO GRATA

Por tudo o que me deste:
- Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como louco...
- Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
- Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: - Obrigado, obrigado
Por tudo o que deste!


Carlos Queiroz

quarta-feira, 2 de julho de 2008

RAUL DE CARVALHO (1920-1984)




Natural do Alvito, Alentejo, Raúl de Carvalho foi colaborador das revistas Távola Redonda e Árvore e Cadernos de Poesia, que, na década de 50, conglomeravam de forma irregular, mas activa, poetas de várias sensibilidades.

Irreverente,iconoclasta, marginal, ignorado, habitante da solidão mas carregado de humanidade, solidário com os mais pobres e desfavorecidos, Raúl de Carvalho é um poeta que vale a pena ler e reler com muita atenção.

A sua obra completa está publicada na Caminho e deveremos sempre destacar um poema longo e excepcionalmente belo intitulado "Serenidade és minha" que assim começa:



"Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os monstros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.
..."

CANÇÃO BURGUESA

Consolo e delícia
Da vida burguesa...

Sete horas em ponto
O jantar na mesa;
Café bem quentinho,
Conversa tranquila,
E um lençol de linho
Esperando o seu dono
Para um belo sono...

Que bom não ter sonhos,
Dormir sossegado!
Já estou acordado,
Já salto da cama,
- Maria, Maria,
Traga os meus chinelos,
Traga o meu pijama...
A alma lavada,
O corpo limpinho.
- Bom dia vizinha!
- Bom dia vizinho!

Consolo e delícia
Da vida burguesa...
Se isto continua,
Morro, com certeza!


Raúl de Carvalho

terça-feira, 1 de julho de 2008

MARIA ALBERTA MENÉRES (1930)




A minha muito querida amiga Maria Alberta Menéres foi professora, tradutora, jornalista, e é poetisa e escritora de livros infanto-juvenis.

Formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. A sua primeira obra data de 1952 e intitula-se Intervalo, tendo sido premiada, em 1960, com o seu livro Água-Memória, no Concurso Internacional de Poesia Giacomo Leopardi.

De 1965 a 1973 foi professora do Ensino Técnico, Preparatório e Secundário nas disciplinas de Língua Portuguesa e História. Colaborou com vários jornais e revistas literárias - Diário de Notícias, Tábula Redonda, Cadernos do Meio Dia e Diário Popular. Neste último foi responsável pela secção de iniciação à literatura.

De 1974 a 1986, dirigiu o Departamento de Programas Infantis e Juvenis da Rádio Televisão Portuguesa (RTP). Em colaboração com Ernesto de Melo e Castro, organizou, em 1979, uma Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa.

Em 1986, recebeu o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças, "pelo conjunto da sua obra literária e pela manutenção de um alto nível de qualidade".

A sua obra infanto-juvenil inclui poesia, contos, BD, teatro, novelas e a adaptação de clássicos da literatura.

Entre 1990 e 1993 dirigiu a revista Pais. Entretanto, na Provedoria da Justiça, foi-lhe dada a responsabilidade Provedora de Justiça de Crianças.

Trabalhou com outros autores literários ligados à literatura infanto-juvenil, como António Torrado.

A importãncia da sua obra no campo da literatura infanto-juvenil ofuscou a sua curta mas belíssima obra poética.

POR ENTRE O CREPITAR DOS AUTOMÓVEIS

Por entre o crepitar dos automóveis
o bulício inquebrável da cidade
o relincho das nuvens quando imóveis
me oferecem na garupa a liberdade,

por entre o que hoje sei e nunca sei
deste abrupto silêncio que me invade
sem que uma nesga azul do que inventei
deixe de ser mentira ou ser verdade,

pudera um dia alguém ter leve imagem
de mim que fico e parto sem vontade
ao sabor de um destino de viagem,

pudera eu querer parar em minha idade,
aperceber-me enfim da percentagem
que sobrando me está de eternidade.


Maria Alberta Menéres