terça-feira, 20 de maio de 2008

CARTA DE UM CONTRATADO

ANTÓNIO JACINTO (1924-1990)


Carta dum contratado

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que dissesse
Deste anseio
De te ver
Deste receio
De te perder
Deste mais que bem querer que sinto
Deste mal indefinido que me persegue
Desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta de confidências íntimas,
Uma carta de lembranças de ti,
De ti
Dos teus lábios vermelhos como tacula
Dos teus cabelos negros como diloa
Dos teus olhos doces como macongue
Dos teus seios duros como maboque
Do teu andar de onça
E dos teus carinhos
Que maiores não encontrei por ai...

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Que recordasse nossos dias na capopa
Nossas noites perdidas no capim
Que recordasse a sombra que nos caia dos jambos
O luar que se coava das palmeiras sem fim
Que recordasse a loucura
Da nossa paixão
E a amargura da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Que a não lesses sem suspirar
Que a escondesses de papai Bombo
Que a sonegasses a mamãe Kiesa
Que a relesses sem a frieza
Do esquecimento
Uma carta que em todo o Kilombo
Outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que ta levasse o vento que passa
Uma carta que os cajus e cafeeiros
Que as hienas e palancas que os jacarés e bagres
Pudessem entender
Para que se o vento a perdesse no caminho
Os bichos e plantas
Compadecidos de nosso pungente sofrer
De canto em canto
De lamento em lamento
De farfalhar em farfalhar
Te levassem puras e quentes
As palavras ardentes
As palavras magoadas da minha carta
Que eu queria escrever-te amor

Eu queria escrever-te uma carta...

Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
Por que é, por que é, por que é, meu bem
Que tu não sabes ler
E eu - Oh! Desespero! - não sei escrever também!

4 comentários:

mariam [Maria Martins] disse...

tão bonito!
lembrei-me criança e de estórias contadas por meu avô e meu pai, de colegas da "tropa", que deixavam seus "amores" lá na terra e saudosos, lhes pediam que lhes escrevessem uma letras...à pergunta "que queres que escreva?" respondiam ..."o que bocemecê quiser, sei que escreve tão lindo, e, se calhar meu amor também não vai saber ler...ou ter alguém a quem dar a ler..."

desculpe o alongamento... mas apeteceu-me!

(PS.de meu avô a meu pai distavam cerca de 25 anos... mas o grau de aliteracia/analfabetismo era quase o mesmo,
hoje, todos saberão ler e escrever ... mas como estamos de literacia?!... )

bom feriado
e um sorriso :)

mariam [Maria Martins] disse...

...e isto era mesmo em Portugal continental...

:)

Fátima Santos disse...

as cartas de amor que a minha escrevia
as cartas das amigas e vizinhas
"faz-me tanta aflição filha: elas vão falando como se eu fosse mesmo uma caneta debruçada na folha da carta..."

Fátima Santos disse...

minha mãe