domingo, 18 de maio de 2008

CARTAS AO MEU FILHO (4)

Meu querido filho,


No meio de tanto desvario a que assistimos nesta nossa sociedade de mastigar e deitar fora, às vezes dá-me vontade de dizer : “No meu tempo é que era bom!”

Sei que é um contra-senso Sempre estive convencido de que quem muitas vezes repete essa costumeira frasezinha, geralmente, é porque tem memória curta e guarda uma visão enganadora e dourada do tempo que em tempos viveu. Ou então, trata-se de alguém que teve a sorte de viver um tempo feliz, protegido das infelicidades desse seu tempo.

Eu cá, posso dizer com toda a certeza que “No meu tempo é que não era bom!”. No entanto, tenho saudades de algumas coisas. Saudades grandes. Sobretudo da amizade à prova de todas as balas, ou da força com que acreditava que havia um lugar e um tempo em que o amor puro, absoluto e perene era possível.

Era talvez essa crença que nos mantinha de pé, intensamente de pé contra tanta porta fechada, tanta sombra ameaçadora, tanta estupidez instalada.

Quando eu tinha a tua idade, vivia num país muito triste. Já te contei vezes sem fim. O que é difícil não é contar. O difícil é fazer entender na pele a tristeza, o medo e o desespero. E mais: a vergonha que sentíamos quando íamos ao estrangeiro e tínhamos de dizer que éramos daquele pequeno país dominado por uma teimosa, violenta e rançosa ditadura fascista e que, ainda por cima, toda a gente julgava que fazia parte da Espanha.

De facto, posso garantir que no meu tempo é que não era mesmo nada bom. Por isso é que eu e alguns amigos íamos contra aquele tempo e fazíamos teatro, distribuíamos panfletos contra a guerra, enfrentávamos bufos, fazíamos greves, exigíamos um ensino decente, denunciávamos professores incompetentes, cantávamos, declamávamos poemas, acendíamos labaredas em nosso redor.

Não penses que éramos heróis. Outros deram muito mais de si para que tudo se mudasse. Nós só não conseguíamos ficar calados. É tudo. E por isso, havia alguns que pagavam pela medida grande e acabavam presos e torturados.

Presos e torturados... Ditas hoje em dia, estas palavras não doem, não deitam sangue, parecem apenas palavras, não é? Há gente que julga que são só palavras. Gente que passou ao lado disto tudo ou nasceu depois e olha para esse tempo do alto da sua sobranceria ou do seu desdém, sem saber a que é que cheira a palavra medo, a que é que sabe a palavra raiva, como é que queima a palavra revolta.

Um dia acordei com a notícia de que o Joaquim, a Célia e outros tinham sido presos. Não sabes quem é o Joaquim ou a Célia. Mas é bom que saibas que tinham nome esses amigos presos e torturados. Não eram números nas estatísticas dos livros de História. Eram pessoas concretas. Amigos lindos, doidos... Amigos! Eu tinha jantado ontem ou anteontem com cada um deles e naquela altura, passados dias ou horas, podia ouvir por dentro da minha aflição as pancadas a meio da noite, as ameaças buçais dos carrascos da PIDE, o terror que os assaltava entre paredes a escorrer humidade e gritos de dor de outros presos.

Não se podia ignorar os amigos que estavam em Caxias ou Peniche, nem os que vinham da guerra mutilados ou perdidos por dentro da cabeça, ou aqueles a quem dizíamos adeus para sempre quando partiam para o exílio. E um adeus dito assim é uma palavra que nos fica a doer por dentro das pálpebras em todos os dias da vida.

É por isso que volto a dizer que “No meu tempo é que não era bom!”. Não quer dizer que eu esteja satisfeito e que agora tudo seja maravilhoso. Nem pensar. Algumas coisas são melhores. Algumas dúvidas e angústias são maiores. Mas somos livres e a palavra liberdade é daquelas que tem um sabor maravilhoso quando a podemos dizer livremente.

Gostava de saber que os tempos vão mudar durante a tua vida, que a esperança se venha a instalar com mais força nos corações, que o mundo se torne melhor para todos os que o habitam e que tu contribuíste para isso nem que seja com um grãozinho da tua arte e da tua humanidade.

Gostava de estar contigo no dia em que, homem maduro, possas dizer aos teus filhos que o tempo do teu pai não era bom, que o teu tempo foi melhor, mas que o tempo deles pode ser o da verdadeira razão, o da mais intensa luz, o da mais profunda e fraterna amabilidade.

8 comentários:

mariam [Maria Martins] disse...

belíssimo "testemunho" a um filho...

era pequenina em 74, mas, também Eu, mãe d`hoje, quero (muito) que meus filhos e os filhos dos meus filhos, vivam num Portugal cada vez Melhor...

Boa semana
um sorriso :)

Maria disse...

Pode ser que não falte muito para que o tempo do reacender as labaredas chegue...

Beijos

JOSÉ FANHA disse...

Pois é... Pode ser que não falte muito mas pode demorar. Não faz mal. Temos de tomar de empréstimo a teimosia desse companheiro simpático que é o burro. Porque o que não havemos de perder é a fé e a dignidade.

Um beijo,

José Fanha

Caçadora de Emoções disse...

Esta sua carta é tão bela que me faltam as palavras para a comentar...
Sim, vamos acreditar que há-de chegar o "tempo dos sorrisos" e que vamos vivê-lo intensamente!

Um abraço,

samuel disse...

Não nos faltam os motivos... que não faltem as vozes.

Abraço

LeniB disse...

Não perco a fé nem a esperança que o tempo dos meus filhos seja definitivamente melhor que o meu, esperando, também, que o meu seja melhor do que já foi.
boa semana

(qualquer dia preciso de falar consigo para ver se é possível agendar uma ida sua à minha escola! pode ser?)

Júlio Pêgo disse...

Discurso lúcido e pertinaz em tempo de crise e de transição, onde se esquece o mau do passado para atacar o presente. São epístolas destas que precisamos, para não descrer no futuro, para em conjunto, gerações de filhos e pais, encontrarmos caminhos com mais luz, mais verdade e liberdade
Júlio

Mar Arável disse...

Digo-te do mais profundo

vulcânico

como poderia também eu

escrever o teu texto

Ainda bem