O TIGRE
(Sobre uma pintura de Júlio Pomar)
“… este é um sonho, uma pura diversão da minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou causar um tigre.”
Jorge Luís Borges
Posso causar um tigre.
E dizer um tigre.
E como Borges posso
abrir a cegueira ao tigre.
Vem, tigre.
Esta casa não é só a minha selva.
Aqui podes rugir
e experimentar a cor.
Aqui podes fugir ao destino
com que a nossa mãe natura
te aprisionou a pele às grades.
Aqui poderás para sempre
ser apenas tigre.
Sumptuosa faísca a rasgar a noite.
Raio
relâmpago fendendo o ar
arco voltaico
curva eléctrica
pássaro de tinta
cálice de pura geometria
em cada salto.
(De "Marinheiro de outras luas" a sair em breve)
sábado, 31 de maio de 2014
quarta-feira, 28 de maio de 2014
AS COISAS SIMPLES
AS COISAS SIMPLES
(Sobre pinturas de Nuno de San Payo)
Gosto das coisas sólidas. Sem brilho.
Coisas de linho ou de pedra
desmesuradamente agarradas ao chão.
Gosto das coisas brancas
lavadas pelo ar fresco da manhã
e varridas pela memória recente
da espuma, do sal ou da gaivota.
Coisas simples e serenas:
o pão quente e farto, o café tomado em família,
as meninas chilreando sobre a relva
ao sol da primavera.
Gosto da música suave que,
quase sem de si nos dar presença,
se desprende levemente
de uma flor irrepetível.
Gosto dos pequenos gestos,
os simples, tranquilos e altivos gestos.
Gosto de saber que essa altivez
transporta um incêndio discreto,
um canto de alaúde, um perfume de alfazema.
Gosto das coisas simples, sólidas serenas:
um momento de obscura comoção, um resto de luz
a estender-se na mesa,
a folha de jornal já lido que se desprende e vai
na desmedida ambição
de se tornar borboleta.
José Fanha
(de "Marinheiro de outras luas", a publicar)
(Sobre pinturas de Nuno de San Payo)
Gosto das coisas sólidas. Sem brilho.
Coisas de linho ou de pedra
desmesuradamente agarradas ao chão.
Gosto das coisas brancas
lavadas pelo ar fresco da manhã
e varridas pela memória recente
da espuma, do sal ou da gaivota.
Coisas simples e serenas:
o pão quente e farto, o café tomado em família,
as meninas chilreando sobre a relva
ao sol da primavera.
Gosto da música suave que,
quase sem de si nos dar presença,
se desprende levemente
de uma flor irrepetível.
Gosto dos pequenos gestos,
os simples, tranquilos e altivos gestos.
Gosto de saber que essa altivez
transporta um incêndio discreto,
um canto de alaúde, um perfume de alfazema.
Gosto das coisas simples, sólidas serenas:
um momento de obscura comoção, um resto de luz
a estender-se na mesa,
a folha de jornal já lido que se desprende e vai
na desmedida ambição
de se tornar borboleta.
José Fanha
(de "Marinheiro de outras luas", a publicar)
domingo, 25 de maio de 2014
AZUL
AZUL
(Sobre uma pintura de Pedro Chorão)
Falei, falo, falarei
de um tempo azul, um tempo transparente,
um tempo de traineiras cheias de alegria e prata.
Falei, falo, falarei
de um tempo de telhados preguiçosos,
um tempo obsessivamente azul
com a Primavera a pousar
no tímido suspiro das rosas
pela manhã.
Aprendo uma e outra vez
como é diferente o tempo azul em cada idade,
em cada inquietação,
em cada tempo.
Relembro
o carrossel de todos os azuis,
nos rasgões da herança sonâmbula
que os deuses deixam
a quem queira desvendar os caminhos obscuros
desta vida.
Relembro o primeiro azul na cicatriz polar,
o índigo com seu corpo de caju e peixe seco,
o azul dos meus 6 anos na ilha de todos os piratas,
o azul Neruda, Ilha Negra, Patagónia,
o altivo e frio azul
no rosto de porcelana
das dinastias chinesas.
E o triste, o negro azul
das plantações de algodão.
E o mentiroso azul argentino,
escondendo em si o tango que é vermelho,
feito de veludo ou vinho
ou sangue coalhado.
Cada azul acorda vestido de outras sedas.
Cada azul carrega seu navio, seu mar, seu sonho,
seu cardume de espigas e searas,
sua pequena azeitona no bolso do coração.
De todos os azuis que visitei
guardo no mais doce da lembrança
o azul dos rodapés das casas alentejanas,
o azul da digna respiração das casas alentejanas,
o azul com que as casas alentejanas
oferecem, em cada sombra, um mar inventado
à dolorosa secura do chão.
José Fanha
(DE "Marinheiro de outras luas", a publicar)
(Pintura de Pedro Chorão)
(Sobre uma pintura de Pedro Chorão)
Falei, falo, falarei
de um tempo azul, um tempo transparente,
um tempo de traineiras cheias de alegria e prata.
Falei, falo, falarei
de um tempo de telhados preguiçosos,
um tempo obsessivamente azul
com a Primavera a pousar
no tímido suspiro das rosas
pela manhã.
Aprendo uma e outra vez
como é diferente o tempo azul em cada idade,
em cada inquietação,
em cada tempo.
Relembro
o carrossel de todos os azuis,
nos rasgões da herança sonâmbula
que os deuses deixam
a quem queira desvendar os caminhos obscuros
desta vida.
Relembro o primeiro azul na cicatriz polar,
o índigo com seu corpo de caju e peixe seco,
o azul dos meus 6 anos na ilha de todos os piratas,
o azul Neruda, Ilha Negra, Patagónia,
o altivo e frio azul
no rosto de porcelana
das dinastias chinesas.
E o triste, o negro azul
das plantações de algodão.
E o mentiroso azul argentino,
escondendo em si o tango que é vermelho,
feito de veludo ou vinho
ou sangue coalhado.
Cada azul acorda vestido de outras sedas.
Cada azul carrega seu navio, seu mar, seu sonho,
seu cardume de espigas e searas,
sua pequena azeitona no bolso do coração.
De todos os azuis que visitei
guardo no mais doce da lembrança
o azul dos rodapés das casas alentejanas,
o azul da digna respiração das casas alentejanas,
o azul com que as casas alentejanas
oferecem, em cada sombra, um mar inventado
à dolorosa secura do chão.
José Fanha
(DE "Marinheiro de outras luas", a publicar)
(Pintura de Pedro Chorão)
quinta-feira, 15 de maio de 2014
SERRA DA LUA
SERRA DA LUA
Sou exactamente como o vento
um homem que nascesse
do húmus do poema
ou de um ninho de pedras
e subisse até ao alto
sobre um chão de sombras e sussurros.
Sou um homem
que pára passo a passo em cada verde irmão
e toca o tronco de ciprestes e abetos
castanheiros
para ouvir nas suas verdes veias
o som da sílaba que voa
na breve respiração do mundo.
Serei um dia como eles
vegetal ou mineral
mas hoje sou um homem que caminha
com braços de vento
um homem a subir a Serra
com um saco onde recolhe silêncios e cristais
e o bater de asas das mais pequenas aves
e as gotas inquietas de uma luz envergonhada.
Sou um homem
que juntando tudo e nada
no ofício do olhar
vai traçando uma palavra e outra e outra
uma música redonda e circular
um delírio de águas
a descer para cima até ao alto
muito para lá das brumas
que vêm engolir telhados e janelas
e apagar castelos
palácios
e vaidades.´
Sou um homem
que depois de todo o chão
ainda sobe
através do ar puro e prateado.
Um homem
ou um vento feito de sonhos
de ossos
nervos
e de incertos passos.
Um homem
que vai para lá da Serra
e sobe até tocar
a lua branca
a grande mãe
a forja de todos os mistérios
que habitam o nosso sangue.
José Fanha
segunda-feira, 12 de maio de 2014
ERRÂNCIA
ERRÂNCIA
Tu que nasces hoje ou amanhã,
António ou Manuel
ou seja qual for o nome
de vento
que em lusa língua te for dado,
serás marcado
com o ferrete da distância.
Seja o teu olhar de barro ou de granito,
buscarás para sempre
a estrela ou a palavra
que te entregue o corpo ao mar.
Aí acenderás o lume e serás abandonado
à tua condição de viajante,
trabalhando eternamente
sobre os mapas justos e perfeitos
onde se traçam as rotas para chegar
à mais bela de todas as ilhas inexistentes.
José Fanha
(Pintura de Lima de Freitas)
Tu que nasces hoje ou amanhã,
António ou Manuel
ou seja qual for o nome
de vento
que em lusa língua te for dado,
serás marcado
com o ferrete da distância.
Seja o teu olhar de barro ou de granito,
buscarás para sempre
a estrela ou a palavra
que te entregue o corpo ao mar.
Aí acenderás o lume e serás abandonado
à tua condição de viajante,
trabalhando eternamente
sobre os mapas justos e perfeitos
onde se traçam as rotas para chegar
à mais bela de todas as ilhas inexistentes.
José Fanha
(Pintura de Lima de Freitas)
sábado, 10 de maio de 2014
UM POEMA PARA ESCREVER
UM POEMA PARA ESCREVER
Tenho um poema para escrever
à sombra de um salgueiro.
Um poema
um comboio de memórias
que me sai dos olhos
a caminho da estação da luz.
Tenho um poema para escrever
e uma mão para escrevê-lo.
Um poema,
rosa, peixe ou ave,
um poema
um rio de palavras
que me una
ao palpitante coração da terra.
José Fanha
Tenho um poema para escrever
à sombra de um salgueiro.
Um poema
um comboio de memórias
que me sai dos olhos
a caminho da estação da luz.
Tenho um poema para escrever
e uma mão para escrevê-lo.
Um poema,
rosa, peixe ou ave,
um poema
um rio de palavras
que me una
ao palpitante coração da terra.
José Fanha
quarta-feira, 7 de maio de 2014
EU NESSE TEMPO
EU NESSE TEMPO
Eu nesse tempo voava
tanto quanto me permito recordar.
Coleccionava bonecos
e cromos para colar
e mitos
e voava no espaço da sala
evitando sair pela janela.
O mundo era enorme
terrível
e eu voava.
Ainda hoje por vezes
a horas mortas
abraço o ar
e dou comigo a voar
afastado dos caminhos
para que não digam que as asas
são apenas ornamento
José Fanha
(Autor desconhecido)
Eu nesse tempo voava
tanto quanto me permito recordar.
Coleccionava bonecos
e cromos para colar
e mitos
e voava no espaço da sala
evitando sair pela janela.
O mundo era enorme
terrível
e eu voava.
Ainda hoje por vezes
a horas mortas
abraço o ar
e dou comigo a voar
afastado dos caminhos
para que não digam que as asas
são apenas ornamento
José Fanha
(Autor desconhecido)
segunda-feira, 5 de maio de 2014
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