terça-feira, 23 de junho de 2015

SOU APENAS UM POETA PERDENDO-SE NA TARDE

O Rui Namorado, é um belo poeta tão discreto quando interveniente e certeiro. Coimbrão, da geração das lutas académicas de 62, companheiro de homens como Manuel Alegre e Fernando Assis Pacheco . Sobrinho do grande nome da poesia neo-realista portuguesa que foi Joaquim Namorado.

Acabou de publicar "Os dias imensos" na editora "Lápis de memórias" do meu amigo Adelino Castro. Ainda há quem ligue à poesia neste país! Obrigado Adelino. E obrigado Rui pela tua bela escrita.





FUGA

o quintal nos meus olhos como oferenda verde
a penumbra do fim da tarde deposita-se ao de leve
no repouso tranquilo do olhar
uma leve brisa de outono amarelece os minutos


se eu fosse navegador diria agora adeus
no cais mais íntimo do último porto

mas sou apenas um poeta perdendo-se na tarde
sem índias nem américas, gravado na europa
labirinto de povos e cidades, lugar de livros e de catedrais

sou apenas um bosque, alguém esquecido
das cóleras mais frias da esperança
um ligeiro arrepio do vento ao fim da tarde

se os violoncelos encontrassem ainda o segredo das lágrimas
e pudessem despi-los sem violência nem ternura
para que eu ouvisse os castanheiros fartarem-se do vento

se as guitarras subissem as largas avenidas do terror
como quem rasga as margens da tristeza
e vai ainda mais longe no coração das horas

talvez eu pudesse inventar sílabas de descanso
evitar cuidadosamente o poema como se me fosse embora
e colher a tarde como planície sem vícios nem marés



sexta-feira, 19 de junho de 2015

PÁTRIA MINHA

Há escritores que constituem um marco, um pólo,uma referência imprescindível. E são-no pela sua obra, pela sua vida, pela autoridade da sua palavra, pelo seu posicionamento de ético na sociedade. Foram-no José Afonso e José Saramago. São-no Lídia Jorge e Manuel Alegre.

É preciso ouvir Manuel Alegre quando levanta a voz e quando fala em nome de todos nós, do nosso passado e da possibilidade de termos um futuro. Quando fala em nome da PÁTRIA.


PÁTRIA MINHA

Entre nós e o futuro há arame farpado
levaram o que se via além de nós
não resta mais que a ponta do nariz
como esperar agora o inesperado?
Somos do Sul e o saldo somos nós
contra o bezerro de oiro o teu quadrado
o poema tem de ser o teu país.

Entre nós e amanhã há uma taxa de juro
uma empresa de rating Bruxelas Berlim
entre hoje e o futuro há outra vez um muro
resgate é a palavra que nos diz
tens de explodir o não dentro do sim
não te feches em torres de marfim
o poema tem de ser o teu país.

Toutinegras virão cantar contigo
e os melros que se escondem nas vogais
e o morse aflito e rouco da perdiz
nas sílabas que avisam do perigo
e as lanças das consoantes e os sinais
por dentro das palavras que mais
do que palavras são o teu país.

Oiço dizer Europa mas Europa
é uma nau a chegar ao nunca visto
Flor de la Mar: e o Mundo em tua boca.
Navegação: madre das cousas. Isto
é Europa. País no mar. E vento à popa.
Não este não arrisco logo existo
de cócoras à espera de uma sopa.

Um cheiro de jasmim a brisa nos salgueiros
entre nós e o futuro um silêncio nos diz.
O saldo somos nós: trinta dinheiros.
Pátria minha quem foi que te não quis?
Entre nós e o futuro a terra e a raiz
e a Flor de la Mar e os velhos marinheiros
e o poema onde respira o teu país.