domingo, 22 de março de 2015

O LIMPA-PALAVRAS

Álvaro de Magalhães tem uma obra de enorme qualidade em que trata os meninos como gente adulto e não como patetinhas incapazes de passar além das metas redutoras que lhes querem impor. Este é um poema delicioso que tive o prazer de ouvir na rua do dia 20 durante a peregrinação poética na POESIA À MESA em S. João da Madeira.


O LIMPA-PALAVRAS

Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.

sexta-feira, 20 de março de 2015

POESIA À MESA


Mais uma edição da "POESIA À MESA", grande festa da poesia anual em S. João da Madeira e de que me orgulho muito de ser cúmplice de há muitos anos.

Este ano são especialmente homenageados Álvaro Magalhães, Ana Marques Gastão, Inês Fonseca Santos, José Régio, Manuel Bandeira e Mário Cláudio.

quarta-feira, 18 de março de 2015

É EVIDENTE

E mais um poema do Sidónio Muralha.



É EVIDENTE

Quem vê um papa-formigas
talvez consiga entender
porque razão as formigas
não foram suas amigas
e nunca poderão ser.

segunda-feira, 16 de março de 2015

HISTÓRIA SEM FIM

E continuamos com poemas do Sidónio Muralha e a continuação da sua biografia.


HISTÓRIA SEM FIM

Do ovo da rola
saiu uma rola
que botou de novo
um ovo de rola
que tinha uma rola
que botou um ovo.

Quebra-se o ovo de rola
sai uma rola do ovo
que bota um ovo de rola
e tudo começa de novo.

Ovo de rola tem rola
tem rola que bota ovo.

(Continuaç~ºao)

No início dos anos 60, Sidónio Muralha chega ao Brasil, país que viria a adoptar até ao fim da vida. Primeiramente, estabelece-se com a família em São Paulo. Nesse cidade, com o escritor Fernando Correia da Silva e o pintor Fernando Lemos (ambos portugueses) funda a Editora Giroflé, a qual irá revolucionar e criar um novo padrão para as publicações dirigidas às crianças. O seu projecto editorial não vinga, mas Muralha vai publicando livros para crianças como A Televisão da Bicharda (1962 o I Prêmio da Bienal do Livro de São Paulo) e para adultos como Esse Congo que foi Belga (1969). A par da sua vida literária continuará trabalhando para a Unilever no Brasil, prestando assessoria financeira e proferindo conferências por todo o país todo. Nos anos 70, Sidónio Muralha regressa a Portugal, primeiro para publicitar a sua antologia de poesia Poemas (1971), depois para celebrar o Portugal libertado pela revolução dos cravos. Em 1976 recebe o “Prêmio Meio Ambiente na Literatura Infantil” pelo seu livro Valéria e Vida, ilustrado por Fernando Lemos e que marcou o início de um profícua parceria com a Livros Horizonte. A sua esposa, Maria Fernanda d’Almeida Muralha, faleceu em 1978. Em 1979, Sidónio Muralha recebeu mais um prémio de literatura infantil, o “Prémio Portugal 79 – Livro para Crianças” pelo seu "Helena e a Cotovia". Nesse mesmo ano, casa novamente com a médica obstetra Dra. Helen Butler Muralha, com quem passou a viver em Curitiba.

A 8 de dezembro de 1982, o poeta e escritor Sidónio Muralha faleceu em Curitiba (Paraná, Brasil). Sidónio Muralha foi um dos precursores do neo-realismo português e um grande divulgador da literatura infantil. Em vida, publicou 21 livros em prosa (contos, um romance, ensaio e depoimento) e versos para adultos e 15 livros para crianças, por editoras portuguesas e brasileiras. É considerado um dos melhores poetas para crianças de sempre em língua portuguesa.

sexta-feira, 13 de março de 2015

OS CAMELOS


O meu querido amigo Maurício Leite trouxe-me do Brasil sete-livrinhos-sete da excelente obra de Sidónio Muralha para crianças. Pois cá vão alguns desses poemas e uma notícia da vida de um homem que vale a pena recordar.



OS CAMELOS


No deserto
no deserto,

cem camelos,
mil camelos.

De longe e de perto
todos dizem ao vê-los:

- Como pode ser deserto
se está cheio de camelos?


Sidónio Muralha foi um escritor português com obra significativa como poeta e autor de histórias e poesia para a infância(Lisboa 1920-Curitiba1982).

Pedro Sidónio de Aráujo Muralha nasceu a 28 de Julho de 1920, no bairro da Madragoa, em Lisboa, filho do jornalista e escritor Pedro Muralha.

Ainda muito jovem colaborou com revistas e publicações literárias de algum modo associados ao que viria a ser o neo-realismo português (como por exemplo "Mocidade Académica" e "Solução").

Em 1941, incentivado por Bento de Jesus Caraça, publicou o seu primeiro livro de poesia: Beco. Integrou o movimento neo-realista e os agrupamentos lisboetas desta corrente literária, onde em conjunto com Armindo Rodrigues, Joaquim Namorado, Fernando Namora ou Mário Dionísio foi uma das figuras de proa. Com a obra Passagem de Nível (Coimbra, 1942) fez parte do chamado Novo Cancioneiro, colecção que reuniu obras poéticas de vários autores contestatários do regime salazarista.

Em 1943, desembarca no Congo Belga, em exílio voluntário, para onde partiu com Alexandre Cabral. Nesse país, chegou a ser diretor geral da Unilever Internacional (em Lisboa, Sidónio Muralha estudara Ciências Económicas e Financeiras, mais tarde, cursou Administração de Empresas na Universidade de Louvain, na Bélgica). Em 1944, casou, por procuração (ela em Portugal, ele no Congo) com Maria Fernanda d’Almeida. O casal terá quatro filhos: Alexandre, José Ricardo, Beatriz e Mário Jorge. No Natal de 1949 volta a Portugal, publicando nesse ano a segunda edição de Beco - Passagem de Nível em volume conjunto e no ano seguinte uma obra magistral do seu percurso poético Companheira dos Homens. Ambas as edições de autor contaram com ilustrações da capa do pintor Júlio Pomar com quem manteve uma duradora amizade. Ainda em 1950, com desenhos de Júlio Pomar e músicas de Francine Benoit publica o seu primeiro livro de poemas para crianças: Bichos, Bichinhos e Bicharocos.

No ano de 1960, face aos acontecimentos tumultuosos na vida social do Congo Belga, a família Muralha regressa à Europa fixando residência em Bruxelas durante dois anos. Neste período, continua a trabalhar para a Unilever, viajando constantemente pelo mundo, Muralha estagia e trabalha em Bafatá, (Guiné-Bissau), Ostende, Dakar, Londres e Paris.

No início dos anos 60, Sidónio Muralha chega ao Brasil, país que viria a adoptar até ao fim da vida.

(Continua)

domingo, 8 de março de 2015

FRANCISCO



Estudante de arquitectura, no final dos anos 60, sempre que podia ia até casa da minha colega e grande amiga Isabel Manta, ali ao Bairro Alto, a dois passos da Escola de Belas Artes.
Era e continua a ser uma casa muito especial. Uma casa de arquitecto, de artista, uma casa de livros e música, de palavras e encontros. A casa do pai, o arquitecto, pintor, desenhador, cartoonista João Abel Manta, um homem pelo qual eu tinha e continuo a ter uma imensa admiração.
Foi lá que, fascinado, ouvi os primeiros discos de Jazz, de João Gilberto e da Bossa Nova. Foi lá que fiquei embasbacado perante serigrafias de Rauschenberg. Foi lá ainda que convivi de longe com pessoas como o pintor Rolando Sá Nogueira, o poeta Alexandre O’Neill, o escultor Fernando Conduto, o romancista José Cardoso Pires. E todos nós, os amigos da Isabel, ficávamos a ouvi-los à distância, porque éramos uns miúdos e ainda não tínhamos bagagem para meter o bedelho.
Os anos foram passando e aquela casa continuou a ser para mim um ponto de referência, um lugar de inteligência e bom gosto, onde tudo tinha o seu lugar e a sua razão de ser e não havia nenhuma cedência ao arrebique ou ao enfeite que enche o olho e esvazia o sentido.
Conheci e falei muitas vez com o avô e a avó da Isabel, o pintor Abel Manta e a avó, também pintora, Clementina Carneiro de Moura Manta, que me deixava em brasa quando me contava as visitas a um sobrinho preso pela PIDE no Forte de Peniche
A pouco e pouco, com muito respeito e admiração, fui-me tornando amigo do João Abel Manta. Os seus cartoons e cartazes foram uma das mais ácidas críticas à ditadura ronceira de Salazar e, também, a mais perfeita língua a falar e a rir durante os tempos fantásticos do 25 de Abril. Os seus desenhos para as primeiras capas do JL são absolutamente admiráveis, a sua pintura menos conhecida do que merece será fundamental quando se quiser fazer um balanço do Portugal em que vivemos durante muitas das últimas décadas.
A vida aproximou-me e afastou-me da Isabel. Mas, com mais ou menos proximidade, a profunda amizade continuou sempre.
Até que um dia a Isabel me telefonou a pedir que eu escrevesse uns poemas, coisa pouca, para juntar a uns “trabalhitos” do pai. Para um presente de Natal à filha, a Ana. E ao marido dela, o João. E à filha, a Maria, e ao filho, o Francisco.
Tudo isto porque o Francisco que tinha 3 anos sofre de paralisia cerebral e toda aquela família o estimula, o embala, o faz crescer e ultrapassar os limites impostos pela doença. E aquelaes “trabalhitos” e poemas seriam, de alguma maneira, a prenda de Natal para todos.


Quando chegaram os “trabalhitos” do João Abel Manta não eram “trabalhitos” eram trabalhões, uma sequência de 31 colagens intervencionadas em torno do rosto do Francisco.
Fiquei eufórico, primeiro. Vou escrever para colocar as minhas palavras ao lado de trabalhos do João Abel! Mas logo depois fiquei muito aflito. Como escrever para a família daquela criança? Com que voz? Em que língua? O que é que eu podia encontrar em mim que permitisse construir uma ponte de palavras e silêncios entre o meu ofício de poeta e aquele menino que eu nem conhecia?
Em tempos, o meu filho João, formado em Pintura, deu aulas de Educação Visual (!) a meninos com paralisia cerebral e dizia-me: “Pai, aqueles meninos são lindos!” E eu pensava “Bolas! O meu filho é ainda mais poeta do que eu!”
Mas mal conheci o Francisco, percebi que o meu filho tinha toda a razão. Num ápice fiquei apaixonado pelo Francisco, pela sua inteligência, pela sua alegria transbordante, pela expressão dos seus olhos carregados de misterioso entendimento do mundo em seu redor.
Depois, foi uma busca do menino que ainda posso ter dentro de mim e das minhas palavras. Do menino que gostaria de ter tido uma mãe, um pai, uma avó, um bisavô assim à sua volta. De um menino feliz, carregado do talento de descobrir coisas novas, coisas estranhas, de mil cores, coisas por vezes inatingíveis, por vezes assustadoras, coisas maravilhosas que vai conhecendo e interligando numa mantinha de sentidos e emoções.
Deste passeio de mim para o Francisco foram nascendo os poemas. Pequenos apontamentos, sorrisos, inquietações, ironias, brisas, brincadeiras breves, jogos de palavras, caminhos possíveis entre um homem e um menino muito especial tornados em livro graças ao talento do excelente designer que é o Zé Brandão e ao interesse, amabilidade e empenho da Fundação Calouste Gulbenkian.
E só tenho de agradecer à vida por me dar a oportunidade de aprender um pouco mais deste ofício de construtor de pontes de palavras que vão da mão que escreveu ao olhar deslumbrado dos meninos e dos homens que, por serem diferentes, nos permitem aperfeiçoar a nossa tão frágil humanidade.


De ti para mim vêm as palavras pelo ar
e dizem quase tudo, mãe.

Por dentro das palavras que me envias
moram aves e sereias,
moram pedras e baleias
e estrelas do mar sem fundo.

Pega nos teus lábios, mãe.
Faz nascer de novo o mundo.

domingo, 1 de março de 2015

O LIVRO DOS CANSAÇOS

A a minha amiga Licínia Quitério é uma excelente poeta que tem vindo a tornar-se mais profunda e brilhante a cada livro que publica, aliando a emoção e o trabalho da palavra numa voz sólida e forte mas também profundamente feminina.

"O LIVRO DOS CANSAÇOS" foi apresentado ontem sábado 28, na "nossa" Biblioteca da Ericieira.



Os poetas morrem cedo
Morrem com a luz da madrugada
ou com a noite a que chamam madrugada.
Não se sabe que idade têm
os poetas quando morrem.
Têm a idade do primeiro ou do
último poema que foram.
Os poetas morrem muito.
Quando morrem acrescentam
estrelas às estrelas.
Morrem e brilham os poetas.

Licínia Quitério