quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

APALPAR MANHÃS



“apalpar manhãs”

sonhei que estava enamorado pela palavra antigamente.
eu sorria muito nesse sonho – fossem gargalhadas. aproveitei a ponta desse sorriso e fiz um escorrega. deslizei. tombei no início de uma manhã.
pensei ver duas borboletas mas [riso] eram duas ramelas. peguei nas duas: o peso delas dizia que eu estava acordado. [a partir do tom amarelado das ramelas é possível apalpar manhãs].
então vi: nos dedos, na pele do corpo por acordar, estavam manchas muito enormes: eram manchas de infância
gosto muito desse tipo de varicela.


ONDJAKI

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

DEPOIMENTO

Maria Teresa Horta desenvolve uma música muito própria ligada à própria música do corpo, sendo uma das poetas que traz o corpo e o desejo de uma forma clara e livre para dentro do poema.


MARIA TERESA HORTA (1938)


DEPOIMENTO



Eis que desço
as mãos
os dedos nus

Eis que empunho
o vidro
pela face

Eis que te utilizo
e te
destruo

Eis que te construo
e te
desfaço

Eis o gume novo
desta
pedra

Eis a faca aberta
na
manhã

as árvores
ocultas
nas palavras

o couro – a violência
o trilho
a lã

Eis o linho bordado
numa cama

a linha na fímbria
da toalha

o fuso – o feltro
o fundo da memória

Eis a água
dita
como vã

depostos objectos
de batalha:

a tenda
a espada
a sela
a sede
a vela

Eis que deponho
aquilo
que me ganha

e que retomo
a seda com que visto
a faca da sede
com que rasgo

o rigor da calma
o rigor das pernas
o rigor dos seios
quando minto

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

CANTO DO GÉNESIS

E de novo Fiama.



CANTO DO GÉNESIS

Ao princípio era a luz, depois o céu
azul porque a luz se embebe
nas camadas do ar que olhamos.
Ao princípio era a Paixão e engendrou
Do seu sangue os animais, da sua
Cruz as plantas. Era, ao princípio,
O animal-vegetal minúsculo, oculto
No Paraíso, mas omnipresente
desde o ante-princípio. E da argila
ou terra adâmica formou-se a Natureza
e o Homem, banhados pela luz
que recortou linhas e volumes vagos.
Ao princípio era o martírio
e a bênção daquele que trabalha
e seu corpo e o seu pão de sol a sol.
E os frutos fulguraram nessa luz
Quando as águas se apartaram
e o mar, até hoje, quebra e requebra a onda
para eu ouvir o som do início.


sábado, 17 de janeiro de 2015

BARCAS NOVAS

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), poeta próxima do grupo Poesia 61, foi senhora de uma elegância e de uma contenção invulgares na poesia portuguesa. Ensaísta, tradutora e dramaturga, desenvolveu uma actividade intensa e de grande qualidade.

"Barcas Novas", foi um poema inspirado na poesia medieval de João Zorro mas que tinha óbvia relação com outras barcas, os navios que levavam soldados e armas para a guerra colonial.


Barcas novas


Em Lixboa sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar,
ay mia senhora velida!

Em Lisboa sobre lo ler
barcas novas mandei fazer,
ay mia senhora velida!

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ay mia senhora velida!

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ay mia senhora velida!


João Zorro, trovador português ou galego do séc. XIII


BARCAS NOVAS

Lisboa tem suas barcas
agora lavradas de armas

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra
as armas não lavram terra

São de guerra as barcas novas
no mar deitadas com homens

Barcas novas são mandadas
sobre o mar com suas armas

Não lavram terra com elas
os homens com sua guerra

Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra

Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas

Fiama Hasse Pais Brandão, in Barcas Novas, 1967

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O JORRO DA FONTE QUE ME IRROMPE



Salette Tavares teve formação em filosofia, desenvolveu estudos no âmbito da Estética, dedicou-se com mais profundidade a partir de 1949 aos problemas da linguagem e da teoria da arte. Publicou nos anos 60, na revista Brotéria, importantes ensaios de estética. Colaborou nos cadernos Poesia Experimental, estreando-se poeticamente com o livro Espelho Cego (1957). Em 1974 e 1975, realizou happenings em várias galerias, ligando sempre a palavra e a intervenção artística de vanguarda.


SALETTE TAVARES (1922-1994)


NASCENTE


Em gotas de ametista e de mamilo
sorvendo hoje nos favos da romã
escorro vale extenso e, de tranquilo,
o grande olhar de ontem amanhã.

Firme de barco, de terra e de castelo
navegando com o rosto no levante
na paisagem do tempo te congelo
ó múltiplo de ser, ó cada instante!

Com raízes de partida e de chegada
eu bemdigo o dia e dou-lhe a mão
abrindo em flor na crua madrugada
para beber o céu e conhecer o chão.

Na pupila do tempo me suspendo,
espero o rio para invadir o monte
e no fervor da sede e do tormento
sou o jorro da fonte que me irrompe.


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

MATILDE, MATILDINHA

Matilde, Matildinha, a querida Matilde de meninos e escritores, ficou muito mais conhecida como escritora para a infância do que como poetisa para adultos.

Não deixou obra vasta neste campo.Mas é importante visitá-la pois pertence a uma geração de mulheres que marcou sigmnificativamente a sua presença como uma uma força na poesia portuguesa.


MATILDE ROSA ARAÚJO (1921-2010)


MEU PAÍS


Meu país turístico de doce clima tão frio
De negras neves a caiar os montes
E os prados cansados
Tenho uma capa de degredo larvas de água triste
Nos cabelos húmidos
E pés descalços pelos sapatos do desengano
Meu país de água com o mar à beira
Meteste-me no fogo do ventre um coração parado
Pelas águas geladas de poluídos rios e gastos mares
E sou (fui) a emigrada presente que nem parte nem partiu
Não partirá
Arbusto mal plantado no suicídio do vento
Cobrindo o rosto com as folhas das mãos

domingo, 4 de janeiro de 2015

ASSIM

Natércia Freire é um casos Professora, colabora com a Emissora Nacional e dirige as Artes e Letras do Diário de Notícias até 74.

Amiga de poetas como Carlos Queiroz, David Mourão-Ferreira ou Egito Gonçalves, começou a publicar a sua poesia num tempo em que a mulher era aconselhada pelo Estado Novo a guardar as suas ambições de ser apenas dona de casa e mãe de família.

Diz-se que nos anos a seguir a 74 terá sido ostracizada, o que terá sido injusto pela qualidade da sua obra e pela dimensão humana que sempre revelou. No início do século foi publicada a sua obra que merec muito ser revisitada.




NATÉRCIA FREIRE (1920-2004)



ASSIM


Assim por muito mais e muito menos
Assim por heroísmo e cobardia.
Assim a tarde a noite no momento.
Assim pensar em mim quando vivias.

Assim os dedos longos nos cabelos
Dos mortos abraçados e cativos.
Assim esta miséria de estar viva
E não saber estar viva quando vivo.

Assim nas brancas árvores o tempo
Assim ter acabado o meu destino
E ler-me noutros versos, noutros nomes,
Assim desconhecer aonde habito.

Assim por muito mais e muito menos
Se acaba, em vida, a vida ao suicida.

Assim por ser a hora mais cinzenta,
O desamparo assim da minha vida.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

AMÁLIA - POETA


Amáila Rodrigues, talvez pelo convívio com poetas, em poeta se tornou. Pouco conhecida como tal, com uma obra breve que balança entre os temas mais ligados ao fado e a proximidade de gente como Pedro Homem de Melo, David Mourão-Ferreira ou Nemésio, como é o caso.


CARTA A VITORINO NEMÉSIO (1)

Talvez que o anjo esquecido,
O anjo da poesia,
Se tenha de mim perdido
Sem reparar que o fazia...
Por isso me faltam asas
E me sobejam as penas
De um desejo inalcançado:
Que eu gostava de voar
Até ao anjo perdido
O anjo de mim esquecido,
Que por mim é tão lembrado.
Ai se eu tivesse voado
Aonde queria voar
Não estava agora a rimar
Versos de asas cortadas.
Voava junto de si
Assim fico aonde me vê
Mesmo pregadinha ao chão
Com asas de papelão
E sem entender porquê,
Pois a uns faltam-lhe as asas
Mas por ter asas cortadas
Sofrem uns e outros não?
Eu tenho sofrido muito
Nos meus voos ensaiados
Que ao querer sair do chão
Ficam-me os pés agarrados.
...E por falar dos pés
Com versos de pés quebrados
Perdoe lá a quem os fez
Pelo mal dos meus pecados
Só os fiz por timidez
Que tenho em me dirigir
A quem tem por lucidez
Razão para distinguir
O bom e o mau português.
Assim à minha maneira
Aqui venho responder
Desta forma tão ligeira
Que a sério não pode ser!