sábado, 19 de setembro de 2015

MANUEL ALBERTO VALENTE


O Manuel Alberto Valente é um editor reconhecidíssimo pela qualidade do trabalho que tem feito na sua vida profissional. Devo-lhe ter-me dado a conhecer uma enorme quantidade de escritores.

No entanto será menos conhecido como poeta que teve uma produção mais intensa antes do 25 de Abril. Várias vezes lhe falei da sua poesia e encontrava nele uma timidez como se preferisse deixar a poesia no longe dos anos onde morava.

Felizmente é agora publicada. E algumas pessoas mais jovens ou menos recoirdadas terão por certo agradáveis surpresas ao lê-lo.



LADAÍNHA PARA O TEU ADORMECER


um velho muito velho a sonhar com a Soraya
um padre muito padre a dizer que é ateu
um prédio quase novo que se espera que caia
uma homenagem póstuma a alguém que não morreu

uma canária virgem que abandonou o ninho
uma fonte com água quase a morrer de sede
a dez tostões esticadores p’ró colarinho
um ginasta atrevido que trabalha sem rede

uma pomada mágica do próximo oriente
um macaco sem rabo que foi de foguetão
um bébé sem cabelo a chorar por um pente
uma tia doente a arder no fogão

uma cautela em branco na roda de amanhã
um nariz muito sujo sem ter onde se assoe
um ramo de camélias a estrelar na sertã
e que deus nosso senhor vos abençoe

domingo, 13 de setembro de 2015

DANIEL FARIA

Poeta breve e fulgurante, Daniel Faria naceu emn 1971 e faleceu em 1999 quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.

Anunciando uma clara influênia de Eugénio de Andrade, Daniel Faria construiu uma voz própia que deixava prever um longo e magnífico caminho na poesia que infelizmente ficou apenas pela promessa.


AMO-TE NESTA IDEIA NOCTURNA DA LUZ NAS MÃOS

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

MIGUEL-MANSO


Longe do do que podemos dizer que é o millieu literário, Miguel-Manso ocupa um lugar destacado na poesia contemporânea portuguesa. A sua poesia tem uma ressonância com alguma dimensão telúrica, uma verdade própria que se constrói como uma aventura por vezes emocionante entre a palavra e a vida.

NEM TANTA COISA DEPENDE

~
preferes o canto, o lugar oculto
a folhagem, a sombra, o quarto, este
saco de trigo: ouro de um texto
sobre a velha escrivaninha do real
lá fora o clarão do arvoredo
atalhos para a tingidura da paisagem
cá dentro menos caminho, outro
panorama: a presença tão-só
desabitada de uma pessoa, mistério sem
atributo ou função
sempre a desfeita de um coração
o cultivo intensivo das figuras
e sobram tristeza e dias ao corpo que escreve
no calabouço de uma manhã muito larga
reluzente de gotas de mel
enquanto os gatos lambem o sábado
e sentado, sapo de ouro, permites-te pôr no mundo
(mas porquê) outro poema


[in Ensinar o Caminho ao Diabo, edição do autor, 2012]

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

MATILDE CAMPILHO

A Editora Tinta da China é das poucas editoras que mantém uma coçlecção de poesia com uma distribuição que permite encontrar os seus volumes nas livrarias em geral.

Boa escolha gráfica (como é timbre da editora), direcção do Pedro Mexia, autores novos e velhos, portugueses e estrangeiros... Poesia. E basta.

Parabéns.

A Matilde Campilho é das muito novos e já com grande sucesso suponho que sobretudo no Brasil. Diz-se dela que é uma luso-carioca, jornalista, poeta nómada.

A sua escrita é nova, festiva, intensa. Mistura inglês, português de cá, português de lá, reinventa alguma gramática e construção narrativa.

Constrói-se sobre alguma consistência, muita festa, mais promessa ainda para o futuro. Estamos à espera da continuação.



PRÍNCIPE NO ROSEIRAL


Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.