domingo, 27 de julho de 2014

GILDA


Continuando à volta da língua que falamos e dos seus poetas, um dos grandes da literatura brasileira




MURILO MENDES (1901-1975)

GILDA

Não ponha o nome de Gilda
na sua filha, coitada,
Se tem filha pra nascer
Ou filha pra batisar.
Minha mãe se chama Gilda,
Não se casou com meu pai.
Sempre lhe sobra desgraça,
Não tem tempo de escolher.
Também eu me chamo Gilda,
E, pra dizer a verdade
Sou pouco mais infeliz.
Sou menos do que mulher,
Sou uma mulher qualquer.
Ando à-toa pelo mundo.
Sem força pra me matar.
Minha filha é também Gilda,
Pro costume não perder
É casada com o espelho
E amigada com o José.
Qualquer dia Gilda foge
Ou se mata em Paquetá
Com José ou sem José.
Já comprei lenço de renda
Pra chorar com mais apuro
E aos jornais telefonei.
Se Gilda enfim não morrer,
Se Gilda tiver uma filha
Não põe o nome de Gilda,
Na menina, que não deixo.
Quem ganha o nome de Gilda
Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
No corpo de uma mulher.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

FEITICEIRO DAS IMAGENS E DAS PALAVRAS


Grande feiticeiro das imagens e das palavras, o Malangatana era um muito querido amigo.

Nestes tempos em que é preciso defender a língua portuguesa dos muitos acordos e desacordos, são os poetas da lusofonia que anunciam e sempre anunciaram o caminho do futuro desta língua tão antiga em que todos amamos, rimos, gritamos e sonhamos.


MALANGATANA VALENTE NGENYA (1936-2011)


ÁFRICA GRITA AO LINDO HLONGO


Quem é que te fez negro
desde Cabo até aos Pirâmides?
Quem é que na noite escura gritou
um grito cujo eco fugiu pelo ar?
Quem é que rasgou a capulana
encarnada do templo negro?
Quem é que fez as lagoas de casas espectaculares?
Quem é que pariu o mulato sem pai?
Quem é que na rua à meia-noite
gritou sem grito?
Quem untou na cara do preto asfalto?
Quem é que na noite do feitiço
rasgou as portas da palhota do Xikwembu?
Quem é que partiu a cabeça de suruma?
Quem fumou o rapé sagrado do avô?
Quem untou de banha
a lata vazia
em que o feiticeiro guarda
os seus segredos?

terça-feira, 22 de julho de 2014

MARGARIDA VALE DE GATO



Outra bela poeta entre os surgidos neste século.
Margarida Vale de Gato, investigadora universitária, e (magnífica tradutora O seu livro "Mulher ao mar" vai na 4ª edição.


COM PAIXÃO E HIPOCONDRIA

Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes – entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía

domingo, 20 de julho de 2014

O CAMINHO MARÍTIMO PARA A ÍNDIA




A Catarina Nunes de Almeida é, quanto a mim, uma das mais interessantes poetas surgidas já neste século e acaba de publicar um pequeno livro comovente.

No início deste livrinho lê-se:

"Para o Miguel, que durante 9 meses carregou comigo um filho.
E durante outros tantos, este livro."

E aqui fica um poema

"então a mulher aceNdeu uma velinha sobre a palavra homem
era uma palavra homem sem carta de marear e sem corrigenda -
onde se lia homem devia ler-se homem.

o homem era o limite de cada oração
estava na fluência da mulher como uma vírgula.
sempre que a mulher percorria palavra homem
estava descoberto o caminho marítimo para a índia."


domingo, 6 de julho de 2014

JUAN MANUEL ROCA


Depois de alguns poemas meus, alguns poemas que me emocionaram de poetas lidos por aqui e por ali.

JUAN MANUEL ROCA

Poeta Colombiano



BREVE HISTÓRIA DE NINGUÉM

Diz o senhor Nabokov que a literaura não nasceu
quando uma criança de um vale do Neandertal chegou a
gritar: Um lobo! Um lobo!, e atrás dele , as quatro patas no
ar, um lobo cinzento brandia a sua língua estralejante.

Diz, melhor, que a literatura nasceu quando uma
criança de um vale do Neandertal chegou a gritar: Um
lobo! Um lobo!, e atrás dele não vinha ninguém.

Desde então, ninguém é um perasonagem eterno, um
fantasma nos vales do poema.


(In " OS CINCO ENTERROS DE PESSOA", tradução de Nuno Júdice)