O SENTIDO
(Sobre pinturas de Joaquim Rodrigo)
I
Um dia, de manhã, ao acordar,
tomamos conhecimento
de que nada faz sentido.
Riso ou neve,
nada faz sentido.
Olhamos em redor,
encontramos o quê?
Fragmentos submersos,
membranas calcificadas,
palavras ázimas,
incêndios brancos sem qualquer correspondência
com a música nascida desse imenso continente
que é e foi e será sempre a comoção.
Um dia, de manhã, ao acordar,
o mundo torna-se inesperadamente estreito
e o tempo dos assassinos
começa a instalar-se
com seu doce sorriso sedutor.
Tudo fica ao rés de um fogo que se extingue
e Deus, tenha o nome que tiver,
terra ou mar ou vento,
não é mais que uma peça encravada
no remoer desdentado
de algum mecanismo inútil.
II
Um dia, de manhã, ao acordar,
tomamos conhecimento
de que tudo faz sentido
se soubermos encontrar o ovo essencial,
a fonte, o nome da alegria.
Rejubilamos, então.
Voltamos ao calor da terra.
Beijamos a raiz do cedro
E partimos a arder através da noite.
Aprendemos o caminho antigo
na palma da mão dos ferreiros,
dos oleiros,
os que inventam pássaros de vidro
no esconso da solidão.
É o momento em que as cores da terra
nos vêm chamar
para nos instilar a chama
do arco do seu saber.
Vermelho e sangue,
preto e ocre
são as cores
e dela somos feitos.
E há um risco demarcando
o território do silêncio
e outro
anunciando a chuva.
Barro, lama, lume,
tudo quanto somos
vinha anunciado em cada grão.
E a estrela brota cinco vezes
por dentro do coração.
E basta ler o relâmpago
e soltar a palavra
e declinar o verbo de que nasce a cor.
(de "Marinheiros de outras luas", a publicar)
quinta-feira, 26 de junho de 2014
segunda-feira, 23 de junho de 2014
AS AVESTRUZES BAILARINAS
AS AVESTRUZES BAILARINAS
(Sobre uma pintura de Paula Rego)
Perderam no ovo
a memória do voar.
As avestruzes.
Têm desejos aerodinâmicos.
Dormem numa febre de sentir
encostado ao peito
o mecânico ruído de turbinas
hélices
motores.
Têm sonhos que nunca confessarão
nem sequer á própria sombra.
Aspiram soluçando à forma das fuselagens.
Perderam no ovo a inclinação
à travessia das nuvens.
Vão dançar a noite inteira
procurando tristemente a memória
de uma estrela de um cometa
ou de uma asa.
(de "Marinheiros de outras luas", a publicar)
(Sobre uma pintura de Paula Rego)
Perderam no ovo
a memória do voar.
As avestruzes.
Têm desejos aerodinâmicos.
Dormem numa febre de sentir
encostado ao peito
o mecânico ruído de turbinas
hélices
motores.
Têm sonhos que nunca confessarão
nem sequer á própria sombra.
Aspiram soluçando à forma das fuselagens.
Perderam no ovo a inclinação
à travessia das nuvens.
Vão dançar a noite inteira
procurando tristemente a memória
de uma estrela de um cometa
ou de uma asa.
(de "Marinheiros de outras luas", a publicar)
sábado, 21 de junho de 2014
PAI
PAI
(Sobre uma escultura de João Cutlieiro)
“Aos 16 anos uma pessoa ainda pensa que pode fugir ao pai.”
Salman Rushdie
Busco um pai ausente aqui,
na pedra,
na severa e segura presença
da pedra,
um pai de pedra,
um chão de onde partir.
Busco duas asas de granito
vigiando o descaminho
dos meus passos,
duas asas ou um pai
de pedra erecta e justa,
resistindo eternamente
ao trabalho da ferrugem.
Busco a profissão do guerreiro
grávido de fé e de furor.
Busco à beira-mar
um pai de pedra
onde possa descansar
a febre do olhar.
Busco um fio de prumo,
um pai definitivo
amável e bondoso
surgindo vertical
do puro espanto da terra.
(Sobre uma escultura de João Cutlieiro)
“Aos 16 anos uma pessoa ainda pensa que pode fugir ao pai.”
Salman Rushdie
Busco um pai ausente aqui,
na pedra,
na severa e segura presença
da pedra,
um pai de pedra,
um chão de onde partir.
Busco duas asas de granito
vigiando o descaminho
dos meus passos,
duas asas ou um pai
de pedra erecta e justa,
resistindo eternamente
ao trabalho da ferrugem.
Busco a profissão do guerreiro
grávido de fé e de furor.
Busco à beira-mar
um pai de pedra
onde possa descansar
a febre do olhar.
Busco um fio de prumo,
um pai definitivo
amável e bondoso
surgindo vertical
do puro espanto da terra.
quarta-feira, 18 de junho de 2014
LABIRINTO
LABIRINTO
(Sobre uma gravura de Bartolomeu Cid dos Santos)
“Sabemos agora que não é necessário que os átomos tenham um objectivo.”
Umberto Eco, “A linha e o labirinto”
Vou fazer um labirinto
no outro lado da lua.
Com palavras ou pedras
ou nuvens ou fios de lã.
Tenho de fazer um labirinto
para lá da esquina do vento.
Um labirinto entre o céu e a terra
onde alguém tropece
no cheiro quente
das castanhas em Outubro.
É urgente construir um labirinto
em Outubro ou em Fevereiro.
Um labirinto onde a lua
em cada noite se tinja
de um vermelho escandaloso.
Tenho de inventar a geometria
sem fuga nem distância.
Tenho de fazer acontecer um labirinto.
E soltar o touro essencial.
E acender o olho do falcão.
E rasgar a carne até ouvir
na cor do sangue
a flauta de Mozart.
Tenho de inventar um labirinto,
o lugar onde venha, porventura,
a encontrar-me um dia com todos os que amo,
filhos ou amigos,
pássaros felizes sobre o mar.
´
(Sobre uma gravura de Bartolomeu Cid dos Santos)
“Sabemos agora que não é necessário que os átomos tenham um objectivo.”
Umberto Eco, “A linha e o labirinto”
Vou fazer um labirinto
no outro lado da lua.
Com palavras ou pedras
ou nuvens ou fios de lã.
Tenho de fazer um labirinto
para lá da esquina do vento.
Um labirinto entre o céu e a terra
onde alguém tropece
no cheiro quente
das castanhas em Outubro.
É urgente construir um labirinto
em Outubro ou em Fevereiro.
Um labirinto onde a lua
em cada noite se tinja
de um vermelho escandaloso.
Tenho de inventar a geometria
sem fuga nem distância.
Tenho de fazer acontecer um labirinto.
E soltar o touro essencial.
E acender o olho do falcão.
E rasgar a carne até ouvir
na cor do sangue
a flauta de Mozart.
Tenho de inventar um labirinto,
o lugar onde venha, porventura,
a encontrar-me um dia com todos os que amo,
filhos ou amigos,
pássaros felizes sobre o mar.
´
domingo, 15 de junho de 2014
A CABEÇA DOS PINTORES
A CABEÇA DOS PINTORES
(Sobre pinturas de Cruzeiro Seixas)
“Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.”
André Breton e Paul Éluard
Abre a porta. Entra.
Ouve pela última vez
o aviso asséptico dos homens
sem espinhos nos olhos
nem rosas no coração.
Ouviste? Apesar de tudo vais entrar?
Estás tomado pelo vírus do sangue
e da loucura dos cavalos.
Já não há marcha atrás.
É aqui que começa o céu
e o inferno.
Anda ver.
Na cabeça dos pintores
voam aves amputadas
da brancura imaculada
dos seus sonhos verticais.
Aves doidas aves mansas
que deixam enferrujar
as garras com que rasgaram
a seda do firmamento.
Anda ver este mar que te anuncia
barcos de cal corroída
na cabeça dos pintores!
E não tremas! Não te enganes!
Tu abriste a porta dos mistérios.
Não podes voltar atrás.
Deixa aqui a tua pele e o que resta do tecido
de uma inocência maior.
Tu estás perdido para sempre.
Só te resta mergulhar.
Na cabeça dos pintores
crescem cidades nocturnas
como ausências preenchidas
por restos maravilhosos
da refeição dos chacais!
E em cada esquina descansam
ossaturas descarnadas
dos construtores de ruínas.
E as palavras ficam nuas
sem ter onde germinar.
Na cabeça dos pintores
um touro desembolado
a cuspir um sangue negro
avança no seu martírio
às cinco da tarde em ponto.
E os circos trazem bandejas
onde vêm oferecer
a morte da mágoa verde
ao vício das gargalhadas.
E as bocas pedindo amor
arrastam algas ao vento
à porta das catedrais
nos domingos de manhã.
Na cabeça dos pintores
os odores alaranjados
entregam-se intensamente
ao gozo das oliveiras.
E as mãos negras dos ceifeiros
sob um sol abrasador
semeiam bocas gretadas
nos campos rasos do Sul.
E a água que vem de Deus
acende solenemente
um fogo imenso no céu.
Na cabeça dos pintores
as esferas enlouquecem
dissolvidas lentamente
no suave despotismo
das areias dos desertos.
E ao vento voam crianças
e mantilhas sevilhanas.
E os beduínos caminham
no sentido inverso aos olhos
dispersos pelas lixeiras.
Na cabeça dos pintores
há cães que transpiram cores
e uma música calcária
vai pingando sobre os ossos.
E há navalhas competentes
desenhando cuidadosos
arquipélagos de sangue.
E uma planta tropical
devora virgens cantando.
E os fantasmas insepultos
vêm levar-nos pela mão
a uma sala de cinema
onde os anjos se apagaram.
Anda ver e ver e ver
como tudo pode arder
e nascer e renascer
na geografia de guelras
da cabeça dos pintores!
(De "Marinheiro de outras liuas", a publicar)
(Sobre pinturas de Cruzeiro Seixas)
“Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.”
André Breton e Paul Éluard
Abre a porta. Entra.
Ouve pela última vez
o aviso asséptico dos homens
sem espinhos nos olhos
nem rosas no coração.
Ouviste? Apesar de tudo vais entrar?
Estás tomado pelo vírus do sangue
e da loucura dos cavalos.
Já não há marcha atrás.
É aqui que começa o céu
e o inferno.
Anda ver.
Na cabeça dos pintores
voam aves amputadas
da brancura imaculada
dos seus sonhos verticais.
Aves doidas aves mansas
que deixam enferrujar
as garras com que rasgaram
a seda do firmamento.
Anda ver este mar que te anuncia
barcos de cal corroída
na cabeça dos pintores!
E não tremas! Não te enganes!
Tu abriste a porta dos mistérios.
Não podes voltar atrás.
Deixa aqui a tua pele e o que resta do tecido
de uma inocência maior.
Tu estás perdido para sempre.
Só te resta mergulhar.
Na cabeça dos pintores
crescem cidades nocturnas
como ausências preenchidas
por restos maravilhosos
da refeição dos chacais!
E em cada esquina descansam
ossaturas descarnadas
dos construtores de ruínas.
E as palavras ficam nuas
sem ter onde germinar.
Na cabeça dos pintores
um touro desembolado
a cuspir um sangue negro
avança no seu martírio
às cinco da tarde em ponto.
E os circos trazem bandejas
onde vêm oferecer
a morte da mágoa verde
ao vício das gargalhadas.
E as bocas pedindo amor
arrastam algas ao vento
à porta das catedrais
nos domingos de manhã.
Na cabeça dos pintores
os odores alaranjados
entregam-se intensamente
ao gozo das oliveiras.
E as mãos negras dos ceifeiros
sob um sol abrasador
semeiam bocas gretadas
nos campos rasos do Sul.
E a água que vem de Deus
acende solenemente
um fogo imenso no céu.
Na cabeça dos pintores
as esferas enlouquecem
dissolvidas lentamente
no suave despotismo
das areias dos desertos.
E ao vento voam crianças
e mantilhas sevilhanas.
E os beduínos caminham
no sentido inverso aos olhos
dispersos pelas lixeiras.
Na cabeça dos pintores
há cães que transpiram cores
e uma música calcária
vai pingando sobre os ossos.
E há navalhas competentes
desenhando cuidadosos
arquipélagos de sangue.
E uma planta tropical
devora virgens cantando.
E os fantasmas insepultos
vêm levar-nos pela mão
a uma sala de cinema
onde os anjos se apagaram.
Anda ver e ver e ver
como tudo pode arder
e nascer e renascer
na geografia de guelras
da cabeça dos pintores!
(De "Marinheiro de outras liuas", a publicar)
sábado, 7 de junho de 2014
BRANCO
BRANCO
(Sobre desenhos de Lagoa Henriques)
Branco é o oceano a beijar os pés da deusa.
Branco o meu olhar caminhando
por ruas onde o peixe vem dizer bom dia
ao meu país.
Branco o arrepio a concha
o búzio.
E a sombra branca do sol
E o fruto sumarento do amor.
Branco é o meu ofício
em frente à pedra ou à palavra,
branco o meu destino branco
entregue à brisa quente
das noites brancas de Junho.
No entanto
devo confessar
que muitas vezes me vesti
de ferro e grito
quando o céu se turvava
de adagas afiadas
e metais sombrios.
Respondi à chamada urgente
de lilases dolorosos
de escarlates abrasivos
de vermelhos palpitantes
de magentas arrancados ao choro dos vulcões.
Aprendi como é indispensável
esconder dentro do peito
os atavios da doçura
quando as botas cardadas
vêm esmagar as nuvens
e a fome acampa
sobre os ombros de esqueletos reduzidos
e o sangue de crianças se mistura
à brasa do fim do dia
Sei também
sei intensamente
que é preciso alguém
que em cada dia
levante o branco e diga o branco
e cante o branco e vista de branco o coração.
Alguém de terra.
Alguém de mar.
Alguém marinheiro de mistérios transparentes.
Alguém que derrame sobre o branco de uma pedra
a sua enorme e branca comoção.
(De "Marinheiro de outras luas" a sair em breve)
(Sobre desenhos de Lagoa Henriques)
Branco é o oceano a beijar os pés da deusa.
Branco o meu olhar caminhando
por ruas onde o peixe vem dizer bom dia
ao meu país.
Branco o arrepio a concha
o búzio.
E a sombra branca do sol
E o fruto sumarento do amor.
Branco é o meu ofício
em frente à pedra ou à palavra,
branco o meu destino branco
entregue à brisa quente
das noites brancas de Junho.
No entanto
devo confessar
que muitas vezes me vesti
de ferro e grito
quando o céu se turvava
de adagas afiadas
e metais sombrios.
Respondi à chamada urgente
de lilases dolorosos
de escarlates abrasivos
de vermelhos palpitantes
de magentas arrancados ao choro dos vulcões.
Aprendi como é indispensável
esconder dentro do peito
os atavios da doçura
quando as botas cardadas
vêm esmagar as nuvens
e a fome acampa
sobre os ombros de esqueletos reduzidos
e o sangue de crianças se mistura
à brasa do fim do dia
Sei também
sei intensamente
que é preciso alguém
que em cada dia
levante o branco e diga o branco
e cante o branco e vista de branco o coração.
Alguém de terra.
Alguém de mar.
Alguém marinheiro de mistérios transparentes.
Alguém que derrame sobre o branco de uma pedra
a sua enorme e branca comoção.
(De "Marinheiro de outras luas" a sair em breve)
quarta-feira, 4 de junho de 2014
DESOLAÇÃO
DESOLAÇÃO
(Sobre uma pintura de Dominguez Alvarez)
Não tenho nada mais a acrescentar
a estas cores.
Nem gente, nem ladrar de cães.
A severa paisagem não pede mais palavras.
Nada mexe.
Apenas a brisa leve despenteia
a imutável cabeleira
deste tempo esguio.
A dor aqui é dura
e a nuvem cinzenta ´
como se houvera nascido
de uma lareira apagada.
Os sinos desolados
não se cansam de bater
nas faldas da serrania
e varrer
as paredes ora frias
do meu peito.
(Sobre uma pintura de Dominguez Alvarez)
Não tenho nada mais a acrescentar
a estas cores.
Nem gente, nem ladrar de cães.
A severa paisagem não pede mais palavras.
Nada mexe.
Apenas a brisa leve despenteia
a imutável cabeleira
deste tempo esguio.
A dor aqui é dura
e a nuvem cinzenta ´
como se houvera nascido
de uma lareira apagada.
Os sinos desolados
não se cansam de bater
nas faldas da serrania
e varrer
as paredes ora frias
do meu peito.
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