domingo, 29 de dezembro de 2013
UM CAVALO DE VÁRIAS CORES
Reinaldo Ferreira, filho do famoso Repórter X, nasceu em Barcelona e morreu em Lourenço Marques antes dos 40 anos.
A sua poesia colorida e musical não chegou a ser publicada em vida. Muito referido nos anos 60/70, está agora de novo entregue ao esquecimento, tendo sido em tempos emparceirado, algo exageradamente, com Fernando Pessoa. Muitos dos seus poemas foram cantados por autores como Manuel Freire ou Fausto.
QUERO UM CAVALO DE VÁRIAS CORES
Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.
Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva – nimbos e cerros –
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.
Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.
Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
QUE BELA "GAVETA DO FUNDO"
Às vezes acontece: aparece um poema que nos bate no peito e nos faz parar no meio do bulício emaranhado dos dias. E torna-nos melhores. Mais felizes. Mais gente.Neste caso não é só um poema, é um livro inteiro. Um luxo, neste tempo de fraca poesia. É o caso desta "Gaveta do fundo" do escritor transmontano A. M. Pires Cabral, dado à estampa numa recente e bela colecção de poesia (parabéns pela coragem à Tinta da China, editora, parabéns ao Pedro Mexia, coordenador).
Livro de grande maturidade, de amor à terra, de balanço de uma vida. Li-o emocionado, por vezes comovido. E acredito que esta é a poesia que vale a pena. A que emociona e nos leva para um patamar superior da música das palavras.
AOS MEUS ÓCULOS
Se um dia vos partirdes ficarei
mais à mercê do escuro.
Provavelmente poderei então
nem ler nem escrever nem cortejar
as flores silvestres, as nuvens em castelo,
os pardais disputando uma migalha
- esses frustes amores de fim de tempo.
Deixarei de poder distinguir
um abismo de um simples degrau.
Por isso, vós que sois de vidro quebradiço
como o meu próprio barro,
cuidai-vos em nome de mim.
Paguei-vos, sois meus, deveis-me utilidade.
Faça-se em vós segundo
a minha vontade.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
BEM HAJAS POR VIRES TODOS OS ANOS, MENINO
A Teresa Rita Lopes enviou este poema de Natal aos seus amigos, entre os quais me conto com orgulho
Gosto muito da sua poesia. Professora universitária de grande prestígio, académica distinta e distinguida, uma das maiores especialistas em Fernando Pessoa, Teresa Rita Lopes não se perde em tiques, escreve como quem respira, como quem devolve à terra a sua frescura e aos seres humanos o melhor da sua humanidade.
Gosto muito da sua poesia e sinto-me privilegiado pela sua amizade. Por isso partilho a beleza sencilha do seu poema.
De presépios gosto
desde menina.
De construir por minhas mãos um pequenino mundo
a meu jeito.
A moda do Pai Natal só veio mais tarde
assim como a da Árvore de Natal.
Com ele nunca engracei
postiço das barbas até à barriga.
Quem trazia presentes à minha infância era o Menino Jesus
- cedo percebi que era uma maneira de dizer
como as fadas.
Como podia alguém como eu descer pela chaminé
sem se sujar nem se aleijar?!
Da Árvore de Natal só gosto por ser árvore
e verde.
(Pensar que as há de plástico!)
Hoje tenho presépios pela casa toda
todo o ano!
Que vou comprando por onde ando.
O meu Menino Jesus gosta de ser muitos
e de diferentes sítios como o Pessoa!
No Natal limito-me a actualizá-los com musgo.
E líquenes. E pinhas que trouxe ontem da Fonte do Sol.
Povoo esse mini-mundo também com conchas
que combinam com a cor do barro rosado
do presépio de Viana.
Mas do que mais gosto
é do musgo:
cheira a terra molhada
a verde
a vida.
Sorrio para o Menino (o mesmo em todos os presépios)
e digo-lhe:
Bem hajas por vires todos os anos
festejar com os homens o dia dos teus anos!
Invento para ti mundos simples e pacíficos
para eles se envergonharem das suas ambições
e guerras.
Ámen.
Teresa Rita Lopes
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
NATAL DE 2013 - PORQUE ELES SABEM O QUE FAZEM
NATAL DE 2013
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
AS PESSOAS SENSÍVEIS
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
domingo, 22 de dezembro de 2013
BOM NATAL
Não sei se o Natal era melhor neste tempo. É provável que não.
Estávamos ligados pela palavra que era levada nas cartas e postais pelos CTT.
Sempre tive simpatia pelos CTT. Faziam parte da nossa vida. Sempre gostei de receber cartas e enviar cartas. Aerogramas com letrinha cuidada para o meu Pai em Moçambique e Angola, postais enviados a meio da semana do Colégio Militar para a minha Avó e a minha Mãe, cartas adolescentes para as amigas, namoradas, correspondentes, na Suécia, no Brasil, a Austrália, os relatos assombrados sobre os tempos em que fui arquitecto na Guiné ou guionista em Cabo Verde, os abraços aos amigos nos aniversártios e nas Festas.
Às vezes punha as cartas nos marcos de correio, outras nas próprias estações. E sabia que mais cedo ou mais tarde o carteiro havia de ir entregar a minha carta a pé ou de bicicleta.
Agora temos os mails e os SMS's. Não é melhor nem pior. Perdemos o gesto, o desenho da letra e o seu afecto. É diferente. Mas o importante são mesmo as palavras, a sua doçura e a sua magia.
De qualquer maneira, lá que tenho pena que os CTT já não sejam os nossos CTT, tenho.
Estávamos ligados pela palavra que era levada nas cartas e postais pelos CTT.
Sempre tive simpatia pelos CTT. Faziam parte da nossa vida. Sempre gostei de receber cartas e enviar cartas. Aerogramas com letrinha cuidada para o meu Pai em Moçambique e Angola, postais enviados a meio da semana do Colégio Militar para a minha Avó e a minha Mãe, cartas adolescentes para as amigas, namoradas, correspondentes, na Suécia, no Brasil, a Austrália, os relatos assombrados sobre os tempos em que fui arquitecto na Guiné ou guionista em Cabo Verde, os abraços aos amigos nos aniversártios e nas Festas.
Às vezes punha as cartas nos marcos de correio, outras nas próprias estações. E sabia que mais cedo ou mais tarde o carteiro havia de ir entregar a minha carta a pé ou de bicicleta.
Agora temos os mails e os SMS's. Não é melhor nem pior. Perdemos o gesto, o desenho da letra e o seu afecto. É diferente. Mas o importante são mesmo as palavras, a sua doçura e a sua magia.
De qualquer maneira, lá que tenho pena que os CTT já não sejam os nossos CTT, tenho.
sábado, 14 de dezembro de 2013
PINGA O PINGO
Pinga o pingo da torneira
Pinga pinga
Pinga o pingo
Que amanhã já é domingo
E depois segunda feira
Pinga o pingo da torneira
na banheira
terça feira
quarta feira
Pinga de toda a maneira
quinta feira
sexta feira
Falta pouco p’ra domingo
Pinga o pingo
Pinga pinga
Pingo o pingo da torneira.
José Fanha (1951)
“Cantigas e cantigos para formigas e formigos”, Terramar
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
QUANTAS MARGENS TEM O MAR
Há pessoas de quem somos amigos antes de nos conhecermos. DE quando nos conhecemos percebemos que somos amigos há muito tempo.~
Com o Nuno Higino aconteceu-me isso.Poucas vezes nos encontrámos mas sempre com muita alegria e emoção.
A ALEGRIA
Perguntar se a alegria
é inteira ou tem medida
se é oval ou circular
de que maneira a contém
o olhar quando a anuncia
é o mesmo que perguntar:
-Quantas margens tem o mar?
Nuno Higino, “Versos diversos”
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
INQUOCIENTE
Que saudades tenho do meu amigo Manuel António Pina e daquela ironia que tão bem derramava sobre coisas aparentemente muito sérias mas que podem e devem ser tratadas com a ternura dos grandes poetas.
UMA HISTÓRIA DE DIVIDIR
Um divisor dividia
muitíssimo devagar.
A divisão bem podia,
por ele esperar.
O dividendo, mais lesto,
não podendo perder tempo,
dia a dia ia perdendo
a paciência e o resto.
E, encarando o amigo,
falava-lhe duramente:
“Não posso contar contigo,
és um inquociente!”
Manuel António Pina
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