quinta-feira, 31 de março de 2016

VEM À QUINTA-FEIRA



Filipa Leal, poeta de cuja poesia gosto muito, acaba de publicar um novo livro. Vale a pena lê-lo. É preciso lê-lo. As suas palavras entretecem mantinhas de reflão a partir de momentos do quotidiano de uma forma tão delicada que até parece fácil escrever assim.

Mas, quando mergulhamos na sua escrita percebemos com encanto como é denso e elaborado o seu ofício de palavras.

Bem haja, minha amiga.


VEM À QUINTA -FEIRA


Vem à Quinta-feira.

É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.

Vem à Quinta-feira.

A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.

Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.

Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.

Vem à Quinta-feira.

Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.

Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.

segunda-feira, 28 de março de 2016

JOÃO DAMASCENO

Da poesia de João Damasceno (1955-2010) conhecia um poema apenas, publicado na antologia "Sião". Agora chegou-me pela mão do meu amigo António Cravo, o livro "Corpo Cru".

A sua poesia é uma pedrada que nos atinge com força inesperada. Uma voz notável e completamente ignorada e que aqui vai aparecer com frequência, por certo.




Em terra de cegos quem tem um olho é rei;
quem tem os dois é frequentemente abatido


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Afirmávamos o delírio
dissemos palavras nuas,
provocámos a crise nas onsciências assustadas

Éramos os descobridorea das auroras negras
que transportam no seie e enlouquecem os espíritos

Desdenhámos da natureza,
Perguntámos-lhe os limites

Introduzimos as dúvidas que geram crimes,
explorámos a angústia

Depois era frio:
a cabeça recolhida entre os joelhos, fitávamos a costura das calças

sexta-feira, 25 de março de 2016

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES

Conhecia muito mal a poesia de Daniel Maia-pinto Rodrigues e a ele não o conhecia de todo.

Sabia-o frequentador das muitas tertúlias de poesia do Porto (entre as quais a famosa do café Pinguim.

Conhecemo-nos na Poesia à Mesa em S. João da Madeira. E foi amizade à primeira vista. Vou desatar a conhecer melhor a sua poesia. E darei aqui nota disso.



SINGULAR TEMPO PLURAL

Em Outubro passado
saí à noite com a cunhada de um amigo
o que me pareceu sexualmente correcto.

Tratava-se o espécime de alguém bem alinhavado
o que também me pareceu sexualmente correcto.

Levei-a a jantar a um bonito restaurante
trocámos umas ideias
trocámos uns olhares
engraçámos com os pontos em comum
e tudo estava a correr bem.
Falava eu das castas e tradições
do vinho que bebíamos
quando, sentindo-lhe o bouquet
ao dar um gole em grã seigneur
o estafermo do líquido
me entrou para os pulmões, circunstância infeliz
que provocou de imediato
imponente e borrifada engasgadela
mesmo ali à frente da carinha dela
o que francamente me pareceu
sexualmente incorrecto.

Mais tarde, quando já tinha
a algum custo recuperado o élan
fui com ela dar uma volta pela linha costeira.
Durante o passeio,
disse-me que estava a gostar muito
de ouvir os Roxette
o que me pareceu sexualmente correcto.
Depois abordou a política.
explicou-me que já não era
mas que tinha sido daquele partido
que agora, por sinal, está bastante partido
no mau sentido do termo.

Foi logo a seguir que me falou do mar.
Disse-me que o mar, poucos quilómetros adiante
era lindo!
Eu estava já a afiambrar as ideias
e não tardava muito ia entrar naquela fase
em que nos armamos em carapau.
Mas naqueles poucos quilómetros
que faltavam para o sítio
onde o mar é lindo
o carro ficou sem bateria.
Ainda esgrimi, atrapalhado
um incómodo diálogo com o démarreur
mas o carro, pois sim, já dali não saiu
o que, convenhamos
foi de todo sexualmente incorrecto.

Passou-se uma semana, um mês
sucederam-se os outubros
e, talvez pelo que se passou naquela noite
mas creio que não, as nossas vidas
levaram rumos diferentes.

Através do tempo
quando levo alguém a ver
o sítio onde o mar é lindo
fico com a sensação
de que é sempre um pouco depois.

domingo, 20 de março de 2016

ANGÉLICA FREITAS


E aqui fica uma poeta brasileira invulgar, publicada em Portugal pela editora douda correria do Nuno Moura.

~

querida angélica


querida angélica não pude ir fiquei presa
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
que o zelador se desse conta já eram dez e meia

querida angélica não pude ir tive um pequeno
acidente doméstico meu cabelo se enganchou dentro
da lavadora na verdade está preso até agora estou
ditando este e-mail para minha vizinha

querida angélica não pude ir meu cachorro
morreu e depois ressuscitou e subiu aos céus
passei a tarde envolvida com os bombeiros
e as escadas magírus

querida angélica não pude ir perdi meu cartão
do banco num caixa automático fui reclamar
para o guarda que na verdade era assaltante
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia

querida angélica não pude ir meu chefe me ligou
na última hora disse que ia para o havaí
de motocicleta e eu tive que ir para o trabalho
de biquíni portanto me resfriei

querida angélica não pude ir estou num
cybercafé às margens do orinoco fui sequestrada
por um grupo terrorista por favor deposite
dez mil dólares na conta 11308-0 do citibank
agência valparaíso obrigada pago quando voltar