Não serão muitos os poemas em que Sophia de Mello Breyner Andersen traz a intimidade dos afectos para a mesa da poesia.
A sua poesia visita mais os terrenos dos mitos e da polis. Brilha nela uma altivez, um limpeza das palavras que nunca se perde mesmo quando raramente se aproxima de temas mais pessoais e reservados.
TU DORMES
Tu dormes embalado nos rochedos
E aos meus ouvidos vem falar o vento.
Escuto, busco, chamo e não respondes,
E todo o mundo se tornou fantasma.
Estou fechada, suspensa, prisioneira
Queria voltar para fora, para o dia
Ressurgir, respirar, tornar a ver,
Mas todo o mundo se tornou fantasma.
E a voz do mar encheu o céu e a terra
Uma voz que está cheia e que se quebra
E nunca mais acaba.
Pássaros brancos cortam as janelas,
Anémonas cintilam nos rochedos:
Terror de estar sozinha e de escutar
Com este tempo morto entre os meus dedos.
quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
domingo, 28 de dezembro de 2014
A NOSSA CASA
Na poesia moderna, e depois de um século XIX em que a poesia feminina pouco ou nada se tornou pública, foi Florbela a primeira poetisa a falar da mulher por inteiro, do amor, do desejo, do corpo.
Seguiram-se-lhe outras. As mais conhecidas são Natália e Maria Teresa Horta. Mas é ela que rompe a situação de marginalidade das vozes femininas, sofrendo na pele as dores dessa mesma marginalidade a que estava condenada a condição e a escrita das mulheres.
FLORBELA ESPANCA (1894-1930)
A NOSSA CASA
A nossa casa. Amor, a nossa casa!
Onde está ela. Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!
Onde está ela. Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?
Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,
Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro – tão bom – dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...
Seguiram-se-lhe outras. As mais conhecidas são Natália e Maria Teresa Horta. Mas é ela que rompe a situação de marginalidade das vozes femininas, sofrendo na pele as dores dessa mesma marginalidade a que estava condenada a condição e a escrita das mulheres.
FLORBELA ESPANCA (1894-1930)
A NOSSA CASA
A nossa casa. Amor, a nossa casa!
Onde está ela. Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!
Onde está ela. Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?
Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,
Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro – tão bom – dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
NATAL
Três momentos em volta do Natal e da Fé.
MÁRIO CASTRIM
DLIM-DLIM
Nasce a menina
dlim-dlim
não é Jesus
dlim-dlim
nem Jesuíina
dlim-dlim
ela é a filha
de uma vizinha
não teve burro
nem vaquinha
porque em Lisboa
era difícil
ser assim.
De qualquer modo
dlim-dlim.
FERNANDO PESSOA
NATAL
Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
FREI BENTO DOMINGUES
"Creio que a linguagem religiosa só pode viver no símbolo e na metáfora. Naquilo que é inizível."
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
COMO ESTÁ SERENO O CÉU
Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, Condessa de Oeynhausen, Marquesa de Alorna, fundadora da maçonaria feminina, foi uma das maiores ou talvez a maior figura feminina da cultura portuguesa.
Aristocrata de vastos pergaminhos, poetisa, pensadora, frequentadora da melhor e mais culta sociedade europeia do iluminismo.
MARQUESA DE ALORNA (1750-1839)
Como está sereno o Céu,
como sobe mansamente
a lua resplandecente,
e esclarece este jardim!
Os ventos adormeceram;
das frescas águas do rio
interrompe o murmúrio
de longe o som de um clarim.
Acordam minhas ideias,
que abrangem a Natureza,
e esta nocturna beleza
vem meu estro incendiar.
Mas se à lira lanço a mão,
apagadas esperanças
me apontam cruéis lembranças,
e choro em vez de cantar.
Aristocrata de vastos pergaminhos, poetisa, pensadora, frequentadora da melhor e mais culta sociedade europeia do iluminismo.
MARQUESA DE ALORNA (1750-1839)
Como está sereno o Céu,
como sobe mansamente
a lua resplandecente,
e esclarece este jardim!
Os ventos adormeceram;
das frescas águas do rio
interrompe o murmúrio
de longe o som de um clarim.
Acordam minhas ideias,
que abrangem a Natureza,
e esta nocturna beleza
vem meu estro incendiar.
Mas se à lira lanço a mão,
apagadas esperanças
me apontam cruéis lembranças,
e choro em vez de cantar.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
COMO O QUE CONSOME ALENTA
Outra religiosa nascida já em finais do séc XVII, Soror Madalena da Glória, uma das 3 grandes poetisas do séc. XVII com Soror Violante do Céu e Soror Maria do Céu.
Soror Madalena da Glória era também pintora, o que levou Natália Correia a acentuar que a pintura, bastante cultivada neste período por mulheres artistas, hoje ignoradas, teve o seu expoente feminino em Josefa de Óbidos.
(Pintura de Josefa de Óbidos)
SOROR MADALENA DA GLÓRIA (1672- data da morte desconhecida)
MOTE E GLOSA
Como dá vida o que mata,
Como o que consome, alenta.
Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:
Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Que em lágrimas persuade,
Como dá vida o que mata.
Nesta aflição importuna,
Em que meu coração passa,
Tudo é rigor que trespassa,
Nada golpe que desuna:
Que infausta a minha fortuna
Um bem, que me representa,
Cruel da vista me ausenta,
E não sabe a minha dor
Definir em tal rigor
Como o que consome, alenta.
Soror Madalena da Glória era também pintora, o que levou Natália Correia a acentuar que a pintura, bastante cultivada neste período por mulheres artistas, hoje ignoradas, teve o seu expoente feminino em Josefa de Óbidos.
(Pintura de Josefa de Óbidos)
SOROR MADALENA DA GLÓRIA (1672- data da morte desconhecida)
MOTE E GLOSA
Como dá vida o que mata,
Como o que consome, alenta.
Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:
Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Que em lágrimas persuade,
Como dá vida o que mata.
Nesta aflição importuna,
Em que meu coração passa,
Tudo é rigor que trespassa,
Nada golpe que desuna:
Que infausta a minha fortuna
Um bem, que me representa,
Cruel da vista me ausenta,
E não sabe a minha dor
Definir em tal rigor
Como o que consome, alenta.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
ANTES QUE O VOSSO AMOR MEU PEITO VENÇA
Vale a pena visitar a poesia portuguesa no feminino.
De entre todas as poetisas, a primeira será por certo Soror Violante do CéU professou a 29 de Agosto de 1630 no Convento de Nossa Senhora da Rosa, em Lisboa, convento de monjas da Ordem dos Pregadores, ali vindo a falecer.
Conhecida pelos meios culturais da época como Décima Musa e Fénix dos Engenhos Lusitanos, foi um dos máximos expoentes da poesia barroca portuguesa.
SOROR VIOLANTE DO CÉU (1601 – 1693)
Será brando o rigor, firme a mudança,
Humilde a presunção, vária a firmeza,
Fraco o valor, cobarde a fortaleza,
Triste o prazer, discreta a confiança;
Terá a ingratidão firme lembrança,
Será rude o saber, sábia a rudeza,
Lhana a ficção, sofística a lhaneza,
Áspero o amor, benigna a esquivança;
Será merecimento a indignidade,
Defeito a perfeição, culpa a defensa,
Intrépito o temor, dura a piedade,
Delito a obrigação, favor a ofensa,
Verdadeira a traição, falsa a verdade,
Antes que vosso amor meu peito vença.
De entre todas as poetisas, a primeira será por certo Soror Violante do CéU professou a 29 de Agosto de 1630 no Convento de Nossa Senhora da Rosa, em Lisboa, convento de monjas da Ordem dos Pregadores, ali vindo a falecer.
Conhecida pelos meios culturais da época como Décima Musa e Fénix dos Engenhos Lusitanos, foi um dos máximos expoentes da poesia barroca portuguesa.
SOROR VIOLANTE DO CÉU (1601 – 1693)
Será brando o rigor, firme a mudança,
Humilde a presunção, vária a firmeza,
Fraco o valor, cobarde a fortaleza,
Triste o prazer, discreta a confiança;
Terá a ingratidão firme lembrança,
Será rude o saber, sábia a rudeza,
Lhana a ficção, sofística a lhaneza,
Áspero o amor, benigna a esquivança;
Será merecimento a indignidade,
Defeito a perfeição, culpa a defensa,
Intrépito o temor, dura a piedade,
Delito a obrigação, favor a ofensa,
Verdadeira a traição, falsa a verdade,
Antes que vosso amor meu peito vença.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
QUAL A COR DA LIBERDADE
E a propósito de Abril...
JORGE DE SENA
CANTIGA DE ABRIL
Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade»
J. de S.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever
com que palavras gritar!
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essa paz do cemitério
toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.
Qual a cor da liberdade?
É verde e vermelha.
Esse ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo
só desespero fatal.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
MANHÃ INICIAL E LíMPIDA
Ainda do 40xABRIL, um poema de Fernando Luís Sampaio e uma ilustração de Luís Manuel Gaspar.
FERNANDO LUÍS SAMPAIO
CODA
Da manhã inicial e límpida
Homens de palha destronaram
A chama a favor da combustão
E as palavras de que nascemos
Ladram em matilha silenciosa.
domingo, 7 de dezembro de 2014
40XABRIL
Neste mundo literário à portuguesa, onde reinam pequenos príncipes com balcão de secos e molhados nas páginas pouco literárias dos jornais, se alguém diz muito bem de alguém, vai-se logo pensar aquele role das suspeitas rascas do costume e que, infelizmente, quase sempre, são verdadeiras.
Mal conheço a Catarina Nunes de Almeida. Mas gosto da sua poesia. Gosto cada vez mais. Vai crescendo a cada publicação. Neste excelente livro editado pela ABYSMO, brilha entre vários outros excelentes trabalhos de poetas e ilustradores que, ouvindo a música de José Mário Branco, celebraram os 40 anos do 25 de ABRIL longe e para a frente e para cima dos discursos oficiais.
E se eu não dissesse nada
não me atrevesse mais a escrever
ignorasse todas as tâmaras do mundo os pontos de fuga
nos grandes quadros renascentistas
mais a poluição que ainda vai no adro
e toda a gama de tectos falsos e de capachinhos
disponível na internet?
E se eu fechasse os olhos e o útero e a conta bancária
a todo o anjo que viesse com anunciações
e tarifários ilimitados?
E se eu partisse o antebraço e nunca mais erguesse cartazes
nem cravos nem percorresse a selva que resta com o meu filho
ao colo?
E se eu me recusasse a proferir para sempre uma ave que fosse
uma das que dividem o tempo
uma entre as que salvam?
Ainda assim temo bem
a palavra cegonha romperia a minha mão
em pleno Abril
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
UMA MENINA TINHA UM CÃO QUE TINHA UMA PULGA
Entre os poetas surrealistas, às vezes tão mal conhecidos, podemos encontrar momentos verdadeiramente gloriosos em que a escrita pões a vida ao contrário, ou seja, como ela devia ser.
ANTÓNIO JOSÉ FORTE (1931-1988)
A PULGUINHA DANÇARINA
Uma menina tinha um cão que tinha
uma pulga no focinho.
O nome da menina era Gisela.
O cão chamava-se Piloto.
Só a pulguinha
não tinha
um nome
que fosse pequenino como ela.
Quando a menina cantava
e o cão Piloto ladrava
a pulguinha
que havia de fazer ela?
Como não cantava nem ladrava
a pulguinha
dava pulos e dançava
apesar de pequenina
lhe puseram
o nome de dançarina.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
POSTERIDADES
A Ana Luísa é uma poetisa de grande consistência na escrita e de olhar subtil sobre o mundo que nos cerca.
ANA LUÍSA AMARAL (1956)
POSTERIDADES
Escrevo para a posteridade
do que é nada:
uma lupa tombada
sobre o corpo,
uma almofada lisa,
pequeno pára-quedas
de ternura
[Devia estar amarrotada,
a almofada,
mas não está: está lisa.
Se não, ficaria espraiada
por futuro]
Escrevo para o meu filho
que é de nada,
varão que não possuo:
uma filha com olhos
de transparência tal
de pára-quedas
que um nó de vento
os tornaria muros
[Devia ter mil nós
o pé
da minha filha,
mas não tem: é livre.
Por isso é que é
de tudo]
E em relação
à lupa,
façam os entendidos
o que quer:
um século daqui,
descubram-lhe a
verdade.
[Ponha-se aí a rima
que quiser:
coberta de veludo]
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