domingo, 8 de março de 2015
FRANCISCO
Estudante de arquitectura, no final dos anos 60, sempre que podia ia até casa da minha colega e grande amiga Isabel Manta, ali ao Bairro Alto, a dois passos da Escola de Belas Artes.
Era e continua a ser uma casa muito especial. Uma casa de arquitecto, de artista, uma casa de livros e música, de palavras e encontros. A casa do pai, o arquitecto, pintor, desenhador, cartoonista João Abel Manta, um homem pelo qual eu tinha e continuo a ter uma imensa admiração.
Foi lá que, fascinado, ouvi os primeiros discos de Jazz, de João Gilberto e da Bossa Nova. Foi lá que fiquei embasbacado perante serigrafias de Rauschenberg. Foi lá ainda que convivi de longe com pessoas como o pintor Rolando Sá Nogueira, o poeta Alexandre O’Neill, o escultor Fernando Conduto, o romancista José Cardoso Pires. E todos nós, os amigos da Isabel, ficávamos a ouvi-los à distância, porque éramos uns miúdos e ainda não tínhamos bagagem para meter o bedelho.
Os anos foram passando e aquela casa continuou a ser para mim um ponto de referência, um lugar de inteligência e bom gosto, onde tudo tinha o seu lugar e a sua razão de ser e não havia nenhuma cedência ao arrebique ou ao enfeite que enche o olho e esvazia o sentido.
Conheci e falei muitas vez com o avô e a avó da Isabel, o pintor Abel Manta e a avó, também pintora, Clementina Carneiro de Moura Manta, que me deixava em brasa quando me contava as visitas a um sobrinho preso pela PIDE no Forte de Peniche
A pouco e pouco, com muito respeito e admiração, fui-me tornando amigo do João Abel Manta. Os seus cartoons e cartazes foram uma das mais ácidas críticas à ditadura ronceira de Salazar e, também, a mais perfeita língua a falar e a rir durante os tempos fantásticos do 25 de Abril. Os seus desenhos para as primeiras capas do JL são absolutamente admiráveis, a sua pintura menos conhecida do que merece será fundamental quando se quiser fazer um balanço do Portugal em que vivemos durante muitas das últimas décadas.
A vida aproximou-me e afastou-me da Isabel. Mas, com mais ou menos proximidade, a profunda amizade continuou sempre.
Até que um dia a Isabel me telefonou a pedir que eu escrevesse uns poemas, coisa pouca, para juntar a uns “trabalhitos” do pai. Para um presente de Natal à filha, a Ana. E ao marido dela, o João. E à filha, a Maria, e ao filho, o Francisco.
Tudo isto porque o Francisco que tinha 3 anos sofre de paralisia cerebral e toda aquela família o estimula, o embala, o faz crescer e ultrapassar os limites impostos pela doença. E aquelaes “trabalhitos” e poemas seriam, de alguma maneira, a prenda de Natal para todos.
Quando chegaram os “trabalhitos” do João Abel Manta não eram “trabalhitos” eram trabalhões, uma sequência de 31 colagens intervencionadas em torno do rosto do Francisco.
Fiquei eufórico, primeiro. Vou escrever para colocar as minhas palavras ao lado de trabalhos do João Abel! Mas logo depois fiquei muito aflito. Como escrever para a família daquela criança? Com que voz? Em que língua? O que é que eu podia encontrar em mim que permitisse construir uma ponte de palavras e silêncios entre o meu ofício de poeta e aquele menino que eu nem conhecia?
Em tempos, o meu filho João, formado em Pintura, deu aulas de Educação Visual (!) a meninos com paralisia cerebral e dizia-me: “Pai, aqueles meninos são lindos!” E eu pensava “Bolas! O meu filho é ainda mais poeta do que eu!”
Mas mal conheci o Francisco, percebi que o meu filho tinha toda a razão. Num ápice fiquei apaixonado pelo Francisco, pela sua inteligência, pela sua alegria transbordante, pela expressão dos seus olhos carregados de misterioso entendimento do mundo em seu redor.
Depois, foi uma busca do menino que ainda posso ter dentro de mim e das minhas palavras. Do menino que gostaria de ter tido uma mãe, um pai, uma avó, um bisavô assim à sua volta. De um menino feliz, carregado do talento de descobrir coisas novas, coisas estranhas, de mil cores, coisas por vezes inatingíveis, por vezes assustadoras, coisas maravilhosas que vai conhecendo e interligando numa mantinha de sentidos e emoções.
Deste passeio de mim para o Francisco foram nascendo os poemas. Pequenos apontamentos, sorrisos, inquietações, ironias, brisas, brincadeiras breves, jogos de palavras, caminhos possíveis entre um homem e um menino muito especial tornados em livro graças ao talento do excelente designer que é o Zé Brandão e ao interesse, amabilidade e empenho da Fundação Calouste Gulbenkian.
E só tenho de agradecer à vida por me dar a oportunidade de aprender um pouco mais deste ofício de construtor de pontes de palavras que vão da mão que escreveu ao olhar deslumbrado dos meninos e dos homens que, por serem diferentes, nos permitem aperfeiçoar a nossa tão frágil humanidade.
De ti para mim vêm as palavras pelo ar
e dizem quase tudo, mãe.
Por dentro das palavras que me envias
moram aves e sereias,
moram pedras e baleias
e estrelas do mar sem fundo.
Pega nos teus lábios, mãe.
Faz nascer de novo o mundo.
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