sexta-feira, 21 de agosto de 2015

EDUARDA CHIOTE

Eduarda Chiote, nascida em 1930, tem uma obra vasta, intensa, caminhando nalguma forma de margem.


NA MORTE ESTÁ DOENDO INCRIVELMENTE


Vontade de ter perdido a vontade,
acabei por me enfiar por um corredor à minha procura,
a enfermaria usava nesse dia chinelos azuis e bata da mesma cor,
emocionei-me com os meus passos
no céu
e desejei que as seringas me recusassem as veias: a porta do quarto
[entreaberta sorriu-me
como se ela mesma tomada de espanto
me garantisse nada é tão terrível como imaginas,
evadiste-te.
E já nem os teus
órgãos - em tempestade. O vidro do soro balançava no vazio
como quando as minhas palavras gota
a gota.
Quero agora esquecer que há poemas com muitas receitas,
contas por pagar,
unhas que se esgotam
nos dedos; páginas separadas do livro - são as contingências,
as contingências.
Nada pode ser assim tão ruim: tive alta, mas aqui,
na morte,
está doendo incrivelmente.
«A vida corrói mesmo»,
é uma iniquidade, uma iniquidade: tornei-me tão
insuficiente
que se ninguém
aparecer
não tem importância nenhuma.
Só te peço que guardes de mim uma pequena recordação, pois nela
permaneceremos: a tua escrita e a minha
autobiografia


1 comentário:

tb disse...

A necessidade de prolongar memórias...