terça-feira, 10 de janeiro de 2012

LEITURAS 2011 - ROMANCES ESTRANGEIROS

Sou um leitor muito viciado. Acredito que a leitura nos pode ajudar a conhecermo-nos melhor e a conhecermos melhor os outros, os que estão mais perto de nós e os que estão muito distantes.

Gosto de dizer que conheço de cor e salteado a cidade de Buenos Aires. Nunca lá fui. Mas li muitos livros passados em Buenos Aires (Borges, Puig, Eloy Martínez, Piglia...)

Muito mais podia dizer da leitura e da forma libertadora de que se pode revestir.

Mas hoje apenas pretendo passar o vício.

Cá vão alguns dos livros que mais gostei de ler este ano que acabou.



Os escritores russos do séc. XIX são como remédios para mim. De vez em quando... Lá vai um para me lembrar de como é escrever muito, muito bem. Gogol, Turgueniev, Tchekov... E Tolstoi, sempre sempre Tolstoi.

Este livro sobre a figura de um herói Uzbeque além de ser uma obra notável mostra-nos um pouco do que é a raiz histórica do conflito no Uzbequistão.

Esta novela, magnificamente trazida por Nina e Filipe Guerra, foi proibida pela forma como Tolstoi retratava a devassidão dos oficiais do exército russo e a pouca finura de inteligência do Tzar.

A literatura é por vezes perigosa. E ainda bem!



Modiano é um magnífico escritor que habita a literatura de uma forma delicada e discreta. A memória e o tempo são a mantinha de que faz a sua escrita que anda para a frente e para trás construindo a matéria de que é feita a vida de cada personagem, a vida de cada um de nós.




Gary fez uma malandrice. Usou um pseudónimo e ganhou duas vezes o famoso Prémio Goncourt que por regulamento só deveria ser concedido a cada autor por uma única vez.

Neste romance o narrador é num menino árabe que vive em casa de uma ama judia que vive de tomar conta dos filhos das mais pobres prostitutas de paris.

A narrativa, de uma imensa ternura, faz-nos acompanhar as iniciações de um rapazinho aos vários desafios da vida.

O humor é a nota dominante. Humor ingénuo, humor delirante, humor trágico.

Este é um daqueles livros de que não me vou esquecer na minha vida. Fica na mesa de cabeceira para o ler outra e outra vez,



O escritor napolitano Erri de Luca foi a minha grande descoberta deste ano. Escrita belíssima, poética, concisa, dura, daquela que nos faz sentir felizes por pertencermos a uma certa humanidade feita de bons sentimentos e muita dignidade.

A história é pouca, o velho gamo e o velho que se vigiam no alto da montanha preparados para a última caçada. As palavras e a maneira como de Luca as cruza acendem-nos emoções invulgares.

Ainda por cima, há várias novelas suas publicadas em português. Já li mais duas. Um mimo.



Nascido na Bósnia, prémio Nobel em 61, Andric é um escritor excepcional. Esta novela passa-se no pátio de uma prisão na Turquia onde se entretecem as histórias, as mentiras, os medos, os sonhos dos presos que ali se cruzam.

Andric leva-nos a um mundo estranho onde o seu talento de escritor nos faz mergulhar sobre na estranha matéria de que são feitos os homens.



A leitura dos romances policiais do sueco Henning Mankell é um vício. O seu detective Kurt Wallander é um ser humano que se torna nosso amigo, um investigador que se depara com um novo tipo de crimes que resultam da degradação da Suécia social-democrata e da miséria social resultante do avanço do neo-liberalismo que também por cá nos vai deixando completamente arrombados.

Mankell, um dos escritores que mais livros vende na Europa, vive parte do ano em Maputo onde criou um grupo de teatro e se dedica um trabalho intenso de animação socio-cultural.

Para quem gosta e para quem não gosta de policiais é do melhor que anda por aí.




Os livros do cubano Padura são uma paixão pessoal. Neste romance Padura pega nas desaparecidas memórias e papeis de uma figura real, um poeta do século XIX, independentista, lutador pela liberdade e maçon (coisa que está tão na moda), e cria uma espécie de romance policial em torno desse desaparecimento.

Mas faz ainda mais do que isso, traça o percurso de regresso a Cuba de um homem que procura encontrar esses documentos para completar a biografia do poeta maçon.

Por diversos equívocos o investigador deixou o país há muitos anos e regressa tentando reencontrar-se com a pátria e os amigos e procurando saber quem o traiu e o obrigou ao exílio.

A história do poeta do séc. XIX e a do seu historiador correm paralelas e o livro vai como um rio no tom de melancólico romantismo e amor pela ilha do belo escritor que é Leonardo Padura.



Tomás Eloy Martínez é um escritor argentino que tenho seguido nas traduções portuguesas e que já se tornou num nome entre os meus escritores preferidos.

Há pouco li uma entrevista com o escritor mexicano Carlos Fuentes que colocava o romance "Santa Evita" (ed. ASA) de Martínez entre os dez romances que melhor podem definir o cânone latino-americano.

Em "Purgatório" acompanhamos um romance portentoso que roda à volta do conceito do tempo e da ausência na Argentina, país de ausências, país onde as marcas do tempo se confundem. Ou talvez não tanto as marcas do tempo como as marcas das identidades de um país que nem sempre coincide consigo mesmo.

País onde uma ditadura apagava acontecimentos pessoas, ruas, cidades e afirmava que o que não se vê não existe.

Um romance que, de forma sinuosa, nos leva a percorrer o tampo para a frente e para trás, em torno do exílio de um escritor e da personagem real/irreal que ele persegue e que por sua vez persegue cegamente o marido assassinado. Deste exílio diz o autor que:

“Do exílio ninguém regressa. O que abandonamos, abandona-nos”

Esta é sobretudo a história de Emília, uma mulher que perdeu tudo. A confiança no pai que sabe cúmplice da ditadura ou mais ainda do que isso. A memória da mãe que enlouquece. O marido assassinado pela polícia.

Emília não aceita que o marido tenha morrido e fica 30 anos à sua procura do Brasil à Venezuela até aos EUA. Uma cartógrafa que procura o mapa em que ela e Simón se possam reencontrar.

“O que fizeste com a tua vida, Emília?”, pergunta o autor. “Nada,” responde Emília, “…e isso é que é pior. Não fiz nada. A minha vida é que fez comigo.”

O rio redondo de buscas e equívocos que é este romance desenha um purgatório, uma espera sem ponto de chegada nem desespero, uma metáfora poderosa para a vida de todos nós.

No entanto, e sem tocar as patetices da literatura cor-de-rosa, o autor não deixa de visitar uma profunda fé no que de melhor a Humanidade tem, ou seja, na capacidade de amar.

Ao longo desta leitura cruzada com outras leituras e uma exposição de pintura, fui reflectindo sobre o mal e a sua expressão na palavra de alguns escritores e na representação de alguns pintores, sobre a perversidade como estética, sobre o convívio com os terríveis fantasmas da guerra ou, pior, da maldade absoluta.

E fico-me nesta afirmação de Tomás Eloy Martínez que me parece apontar para um percurso poética da escrita tão distante desse prazer mórbido que tem invadido muita arte e literatura contemporâneas, nomeadamente entre nós.

“Os romances escrevem-se para emendar no mundo a ausência perpétua daquilo que nunca existiu.”

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