Devo confessar que nunca fui um daqueles exdrúxulos e deslumbrados apreciadores da poesia de Adília Lopes.
Talvez porque sempre fui contra a corrente das modas de ocasião. Talvez porque frequentei muito e continuo a frequentar poetas como Cesariny, Prévert, Breton e outros que caminharam com outro fôlego, outro programa e outro construído olhar sobre a coisa da escrita.
A moda Adília Lopes tem esmorecido ultimamente. Os deslumbrados mudam de negócio periodicamente e desviam-se para outras novidades. Às vezes até fazem de conta que nem se lembram de quem ela é e das loas que lhe teceram.
E eu, como sou um homem livre, até da carga dos possíveis preconceitos, e que estou sempre disponível para me deixar tomar pela força de um poema, dei, pela primeira vez, com um poema de Adília Lopes que me agarrou pela garganta e me virou do avesso.
Fiquei feliz porque encontrar um bom poema é sempre uma festa. E tenho de agradecer ao meu amigo Nicolau Santos que continua um belíssimo trabalho de divulgação da poesia portuguesa nos seus artigos sobre economia no jornal Expresso
Cá vai mais um abraço, meu caro Nicolau, já que os abraços não se gastam como os tostões.
A ELISABETH FOI-SE EMBORA
(com algumas coisas de Anne Sexton)
Eu que já fui do pequeno almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu antiséptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth era a princesa das raposas
porque me roubou a Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida
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2 comentários:
Escrevi, algures por aí, em 2008 sobre Adília Lopes:
Sou suspeita ao falar de Adília Lopes, uma vez que a leio e admiro há bastante tempo. Senhora de uma sensibilidade e agudeza de espírito enorme, fiquei muito satisfeita por a ouvir aqui no Palavras de Ouro, porque o luziu ainda mais.
Ela é um misto de doçura e amarguesa, traduzindo através da poesia todo o sentir que a envolve desde os dias da sua infância até hoje.
Permite-me que te deixe aqui um texto dela, na candura dos seus 11 anos e escrito segundo ela mesma diz nas aulas da Professora Crisanta:
“ A bolinha castanha “
Saí de casa, era uma manhã fria, sem Sol, em que as árvores pareciam mãos enormes buscando a Primavera no céu sem cor…e a chuva caía…caía…
Comecei a andar, abri o guarda-chuva, a rua parecia-me imensa, toda branca, beijada pela chuva. Os pardais voavam nas árvores talvez lobrigando nelas flores, Sol. Senti que era Inverno.
Virei a esquina e ali no chão estava uma bolinha castanha que já não chamaria mais a Primavera… Fiquei parada, contemplando o passarito, como se ele fosse um sinal vermelho que me impedisse de avançar.
Olhei, olhei mais, vi uns olhos abertos, uns olhos sem vida e aquelas penas castanhas…não mais enfrentariam o vento…
Não podia fazer nada. Andei. No ar voavam mais pardais e aquele ali, jamais voaria. Andei. Ouvi a mulher das flores a apregoar e a carroça das hortaliças que chiava longínqua.
Na calçada soaram enfim os meus passos, caminhando sozinhos com a chuva…
Olhei para o céu, brilhava nele o Sol, a chuva tinha parado e o arco-íris era uma cavalgada imensa para o infinito…
Pardal…nascia a manhã dos pregões, das conversas, nasciam nos ninhos mais pardais e aquele sozinho, perdido na multidão das pedras brancas, jamais esperaria o Sol, as flores, o arco-íris, estava morto, enfim.
Adília Lopes
(Este texto foi escrito em 1971. Tinha 11 anos.)
E assim, nascia uma poeta e escritora…
Sou um bocado "esquisita" quanto a poesia e há alguma dela que verdadeiramente não gosto, especialmente uma época em que ela rumou outros sentires. Não sou deslumbrada, mas gosto da escrita dela.
Um abraço
Notável este texto da bolinha castanha. Com 11 anos de idade, a Adília já expressava um lirismo intimista.
Júlio Pêgo
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