segunda-feira, 23 de setembro de 2013

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Tinha 89 anos. Hoje mudou de lugar. A vida foi complicada e enorme a obsessão pela poesia. Creio que foi em tempos candidato ao Prémio Nobel. Nunca pertenceu a capelinhas. Perante a ditadura mostrou uma dignidade invulgar mostrando que também escrevendo se resiste. Deixa uma obra imensa. Fica aqui um dos seus poemas mais antigos e também dos mais emblemáticos.

POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal
em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu
dever?
Porque me sinto irremediavelmete perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isso todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só



Sem comentários: