A CABEÇA DOS PINTORES
(Sobre pinturas de Cruzeiro Seixas)
“Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.”
André Breton e Paul Éluard
Abre a porta. Entra. 
Ouve pela última vez
o aviso asséptico dos homens
sem espinhos nos olhos 
nem rosas no coração.
Ouviste? Apesar de tudo vais entrar?
Estás tomado pelo vírus do sangue
e da loucura dos cavalos.
Já não há marcha atrás.
É aqui que começa o céu 
e o inferno.
Anda ver.
Na cabeça dos pintores
voam aves amputadas
da brancura imaculada
dos seus sonhos verticais.
Aves doidas aves mansas 
que deixam enferrujar
as garras com que rasgaram 
a seda do firmamento.
Anda ver este mar que te anuncia 
barcos de cal corroída 
na cabeça dos pintores!
E não tremas! Não te enganes!
Tu abriste a porta dos mistérios.
Não podes voltar atrás.
Deixa aqui a tua pele e o que resta do tecido
de uma inocência maior.
Tu estás perdido para sempre.
Só te resta mergulhar.
Na cabeça dos pintores 
crescem cidades nocturnas
como ausências preenchidas
por restos maravilhosos
da refeição dos chacais!
E em cada esquina descansam 
ossaturas descarnadas
dos construtores de ruínas.
E as palavras ficam nuas 
sem ter onde germinar.
Na cabeça dos pintores 
um touro desembolado
a cuspir um sangue negro
avança no seu martírio
às cinco da tarde em ponto.
E os circos trazem bandejas 
onde vêm oferecer
a morte da mágoa verde
ao vício das gargalhadas.
E as bocas pedindo amor 
arrastam algas ao vento
à porta das catedrais
nos domingos de manhã.
Na cabeça dos pintores 
os odores alaranjados
entregam-se intensamente
ao gozo das  oliveiras.
E as mãos negras dos ceifeiros 
sob um sol abrasador
semeiam bocas gretadas
nos campos rasos do Sul.
E a água que vem de Deus 
acende solenemente
um fogo imenso no céu.
Na cabeça dos pintores 
as esferas enlouquecem
dissolvidas lentamente
no suave despotismo
das areias dos desertos.
E ao vento voam crianças 
e mantilhas sevilhanas.
E os beduínos caminham 
no sentido inverso aos olhos
dispersos pelas lixeiras.
Na cabeça dos pintores 
há cães que transpiram cores
e uma música calcária 
vai pingando sobre os ossos.
E há navalhas competentes 
desenhando cuidadosos
arquipélagos de sangue.
E uma planta tropical 
devora virgens cantando.
E os fantasmas insepultos 
vêm levar-nos pela mão
a uma sala de cinema
onde os anjos se apagaram.
Anda ver e ver e ver
como tudo pode arder 
e nascer e renascer
na geografia de guelras
da cabeça dos pintores!
(De "Marinheiro de outras liuas", a publicar)
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